quarta-feira, 14 de março de 2007

Bentinho e o irracional


Li Dom Casmurro duas vezes. Só tive contato com a obra de Machado de Assis depois dos 30 anos. Foi uma falha na minha formação humanística. Lê-lo, porém, na maturidade deu-me enorme prazer. A dúvida que remanesce na cabeça do leitor acerca da paternidade de Ezequiel não é respondida. Talvez, se o romance tivesse sido escrito nos dias de hoje, Bentinho pediria um exame de DNA, ajuizaria uma ação de investigação de paternidade e tudo se resolveria. E tiraria a graça do romance.

O que mais me chamou a atenção em Dom Casmurro é a racionalidade de Bentinho. Creio que me identifiquei um pouco. O conflito racional versus emocional permeia uma série de obras clássicas. Desde a Grécia antiga, encontramos este dilema. Antígona se sacrifica pelo irmão conduzida estritamente pela racionalidade, pelo certo. Romeu e Julieta morrem abraçados e levados apenas pelo amor, pelo emocional. São apenas alguns exemplos para ilustrar meu argumento.

Bentinho é um sujeito racional, um ciumento doentio. A cena do Capítulo CVI parece-me o ponto de partida da suspeita. Transcrevo um trecho:

Foi justamente por ocasião de uma lição de astronomia, à praia da Gloria. Sabes que alguma vez a fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes.” (p. 327)

A cena do olhar distante revela que Capitu havia conversado com Escobar e este lhe ajudara a economizar dez libras esterlinas. Em palavras de hoje, Capitu usou Escobar para aplicar o dinheiro que rendeu juros.

Esta cena tem 2 aspectos que merecem reflexão: o ciúme e o olhar distante. Fiquemos com a mais óbvia primeiro e tornarei a falar do olhar distante em outro post, trazendo trechos de autores modernos.

Quando estava no seminário, Bentinho já sofrera de ciúmes quando fora comunicado que Capitu vivia alegre e contente. Achou que ela tinha arrumado outro namorado, que estava feliz pela distância. Depois no enterro de Escobar, Bentinho interpreta o olhar como a prova final. O trecho é do Capítulo CXXIII:

No meio della, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas, poucas e caladas...” (p. 374).

Aquele gesto foi para Bentinho a confissão. Sua racionalidade havia produzido uma realidade – talvez – diversa da verdadeira. Uma realidade imaginária, fruto de seus pensamentos. Algo meio Kantiano, onde a única realidade que existe é a do pensamento. O bom senso levaria Bentinho a confrontar Capitu com suas dúvidas. Mas ele não o faz. E o fim trágico do romance se dá por causa do silêncio de Bentinho.

Há um certo delírio nas conclusões de Bentinho, mas acho que qualquer psicólogo poderia explicar que o ciúme doentio é uma patologia que carece de tratamento. O ciúme é algo irracional, mas do qual não podemos fugir. Todos sentimos ciúme. O grau é que varia. O ciúme pode ser bom e lembrar-nos de quão verdadeiro e sincero é o sentimento pela pessoa querida, mas não pode – e não deve – levar-nos a envenenar o relacionamento. É preciso sangue frio ou contar até dez para deixar a poeira baixar e então confrontarmos a situação. Normalmente o passar do tempo revela que aquele ciúme é uma grande besteira. O que não podemos é deixar o ciúme minar e corroer nossas entranhas a ponto de não falarmos, a ponto de distanciarmos da pessoa, a ponto de desistirmos da pessoa querida.



Uma observação final: os trechos foram transcritos de uma edição de 1938, razão pela qual há aparentes erros ortográficos. A edição é da W.M. Jackson Inc. Editores, Rio de Janeiro. No português antes da reforma ortográfica, Céu era escrito como Céo. Curioso não?

Um comentário:

Fabiola disse...

tem um filme chamado DOM...muito bonitinho!!!

Os olhos de ressaca da Capitu me fazem lembrar o machismo de Bentinho!!!