sábado, 21 de fevereiro de 2015

O "Paraíso" de Tatiana Salem Levy



Sabedor do novo livro de Tatiana Salem Levy, fui à Livraria da Vila da Lorena no início de dezembro em busca do livro. Acostumei-me a me adiantar às livrarias. Fico sabendo dos lançamentos pelos jornais ou pelos perfis dos escritores nas redes sociais e me antecipo ao mercado. Foi assim com os poemas de Fernando Pessoa declamados por Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli. Até agora a Saraiva ainda não tem o produto disponível e a maioria das livrarias ainda não recebeu o DVD. 

A vendedora me olhou com perplexidade quando perguntei sobre o livro. Ela parecia desconhecer a autora, um dos expoentes da literatura brasileira contemporânea. Foi consultar o terminal. O livro acabara de chegar. Estava na caixa no subsolo da loja. Comprei o primeiro exemplar do livro recém-chegado.

Um dileto amigo que me acompanhava e que é ávido comprador de livros (e leitor) me inquire:

- Você gosta tanto dela assim para comprar um livro sem sequer folhear e dar uma lida em alguns trechos? Você sabe do que se trata a estória?

Respondi afirmativamente às duas questões. 

Encantei-me com a prosa de Tatiana Salem Levy em "A Chave de Casa". O livro ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2008 por melhor autor estreante. A forma narrativa, o estilo, o despojo na escrita me cativaram. Virei fã e leitor fiel. 

Em seu novo livro, a escritora trata de temas sociais e volta a dialogar com a memória como forma de compreender quem somos. Tatiana parece indagar - através de seus personagens - sobre a importância do passado na formação do nosso caráter, na construção de uma personalidade que não é inovadora e inédita, mas um somatório de fatores familiares que são transportados de geração em geração ainda que de forma silenciosa e não deliberada.

Estou a digerir as impressões sobre a saga de Ana, protagonista de Paraíso. Parece-me que o novo livro é inferior aos dois anteriores, mas não tenho a certeza. Ana refugia-se num sítio em Nogueira, na região de Petrópolis, no Rio de Janeiro em busca de paz para escrever um romance histórico e em busca de isolamento para lidar com o potencial contágio de AIDS, após uma noitada irresponsável. O título pode se revelar contraditório, pois a calmaria da serra não espanta os fantasmas interiores de Ana. E ela desfia-os ao longo do romance.

A prosa leve de Tatiana é envolvente e o livro, que como a boa literatura brasileira não se tornará um best seller, vale a leitura. E a discussão. A esta discussão retorno em outro post.

PS: clique no tag abaixo para ler mais sobre Tatiana Salem Levy.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Epígrafe - XXXII



instagram @rbueloni


"La vida es un enorme álbum donde ir construyendo un pasado instantáneo, de colores ruidosos y definitivos."

Alejandro Zambra. La vida privada de los árboles. 4a. ed. Barcelona : Editorial Anagrama, 2014, p. 69-70.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Barquinhos

instagram @missuniversoproprio

Buscou um banco que estivesse sombreado por uma ampla copa de árvore e sentou-se à beira-mar, num recuo onde barcos repousavam depois de uma madrugada de trabalho. Nunca fora bom pescador, nem de homens, nem de mulheres, e riu de si mesmo com a péssima piada. Lembrou de Santiago, o velho pescador cubano imortalizado por Hemingway e que ficou oitenta e cinco dias sem pegar um peixe.  Quando fisgou um enorme marlim-azul, este foi devorado por tubarões. Santiago chegou à praia depois de dois dias e duas noites, cansado, exausto e com apenas um esqueleto para comprovar seu feito. Azar? Ele não acreditava nestas coisas de azar, de sorte, de tarô, de horóscopo, de almas gêmeas. Talvez ele fosse incompatível com as mulheres que se aproximavam dele - ou das mulheres das quais se aproximava. 

Estava novamente só. A brisa cálida lhe acariciava o rosto, mas a escuridão lhe dominava. Nem a luz do meio da tarde era capaz de desamarrar a feição fechada e amuada. O silêncio era cortado apenas pelo leve balançar dos barquinhos e das pequenas ondas batendo na mureta que ladeava o calçadão naquele braço de mar, na entrada do porto dos pescadores. Seu interior ainda estava desarrumado, entristecido pelo silêncio agressivo dela. Viajara na vã tentativa de se desvencilhar de um breve passado que lhe incomodava. Sucumbira diante do fracasso do relacionamento. Mais uma vez não deu certo, repetia à exaustão ao longo dos dias. Os repetidos desastres lhe cansavam a ponto de lhe afetar fisicamente. Perdera três quilos desde que ela com secura e frieza lhe dispensara. O dilema se apresentava novamente e imaginara que a perseverança fosse uma prova de amor capaz de demovê-la da ideia, de tirá-la do isolamento, como se ele fosse despachado para uma ilha distante, um exílio imposto por ela, uma censura que mais se assemelhava a um campo de refugiado supervisionado pela ONU. 

Ela se recusara a atender suas ligações, recusara seus presentes, seus mimos, seus gestos carinhosos, seus pedidos de desculpas, sua ida em vão até o portão da casa dela na serra e da qual ela jamais soube, pois diante da campainha, ele recolheu a mão, enfiou a no bolso e recuou cabisbaixo. Mudou de ideia no dia seguinte. Resolveu escrever uma longa carta, certo de que ela a leria. Então por que perder tempo escrevendo?, perguntou-se várias vezes. Porém, insistente, escreveu a carta. Trazia consigo no bolso, dentro de um belo envelope bege, comprado especialmente e escolhido na melhor papelaria da cidade. Ela gostava de receber cartas escritas à mão. Custou-lhe escrever, teve que caprichar na letra, a mão doeu-lhe. Não estava mais acostumado a escrever à mão. Não escrevia longos textos à mão desde as provas do mestrado. O esforço vai ser recompensado, repetia silenciosamente em forma de mantra motivacional. Insistiria mais uma última vez. Era preciso. Era preciso debelar a escuridão que lhe acometia e lhe murchara. 

Tirou uma mariola do bolso e deu duas mordidas. Olhou fixamente o horizonte e suspirou, deixando o aroma do sal invadir-lhe as narinas. Os barquinhos permaneciam em suave dança com as ondas que lhes conduziam. A dança era cadenciada, ritmada, como a vida. No bolso de trás da calça estava a carta, num envelope agora amassado. Olhou para a caligrafia e o nome dela. De uma vez, sem hesitar, rasgou a carta ao meio. Levantou-se e lançou as duas metades na primeira lata de lixo que avistou.