sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Conto: Plácida



PLÁCIDA

O calor abafado do quarto 961 despertou-o no meio da madrugada. Não havia ligado o ar condicionado, pois ela sentiria frio. Uma parca e esfumaçada claridade adentrava pela cortina mal fechada e esquecida pela intensidade dos momentos que se desenrolaram antes de adormecerem.  Levantou-se com cautela e gestos pausados para não fazer barulho. Olhou-a com ternura e notou a beleza de seus traços e curvas. A luz era escassa, mas permitia vislumbrar o belo corpo e o rosto da companheira.

Dormia plácida, alva, com um ressonar causado pela sinusite. Havia-o alertado de que o barulho o incomodaria e o impediria de dormir. Talvez roncasse. Ele deu de ombros. Serena, as pernas nuas não estavam mais recobertas por um lençol revolto que se amarfanhava na ponta da cama. As mãos por debaixo do travesseiro lembravam a de uma criança repousando sobre uma nuvem. Tudo parecia surreal e a iluminação tímida, a leve bruma, dava um ar fantasmagórico, como um sonho bom. O que sonharia ela? Ele acordado a contemplava. Admirava o belo rosto, os lábios finos, os cabelos desarrumados caídos sobre a orelha e a bochecha, as pálpebras cerradas, como janelas que escondiam segredos.


Dormia tranquila. Ele sentou-se na cadeira ao lado da cama e pôs-se a admirá-la, como se aquele momento não fosse se repetir, como se tudo aquilo compusesse uma fotografia na memória, impressa e indelével para jamais ser esquecida, como se tudo fosse etéreo e irreal. Sorriu. Ela estava ali com ele depois de tantos anos.  A alegria era indizível, indescritível. E então, no silêncio da madrugada, na invisível contemplação, sentiu o desejo novamente aflorar e retornou para a cama ao lado dela.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Gonçalo Tavares no Sesc Vila Mariana





Em recente bate-papo no Sesc Vila Mariana, o escritor português Gonçalo Tavares trata da importância de se ler os clássicos, entre outros temas como o valor da vida, a importância da leitura e dos livros, do ofício do escritor. 


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Tradução




TRADUÇÃO

 - Você me traduz tão bem!

- Eu te leio com atenção. Observo-te não com os olhos, mas com as palavras que brotam da tua alma. Ultrapasso a superfície para mergulhar na tua imensidão interior. 

- Mas esta tradução que desfias, não sou eu. Pões poesia no banal, no simples. Não sou poética, nem lírica. Não extraio do prosaico cotidiano o mel das palavras, o sumo das frutas doces que enchem a boca e explodem no coração, da claridade do sol que aquece a pele e transporta a alma para lugares divinos.

- É você, sim. Talvez não tenhas percebido ou se dado conta. Eu te apresento a você mesma. Tento preencher vazios e rejeito tua apressada autocensura de rasa. Descobrimos o profundo no silêncio do cotidiano, nas viagens por estradas solitárias, olhar posto no infinito distante e inatingível, donde tocamos a sensação de eternidade, de transcendência.


- Escrevo em prosa e tu me traduz em versos. 


*  *  *  *  *


Nota: hoje faleceu Manoel de Barros, grande poeta brasileiro, tradutor do simples, do banal, do bucólico, do lúdico. Este breve texto é dedicado a ele em singela homenagem.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Epígrafe - XXXI




"A saudade é um espinho venenoso que quando fere contamina o coração."

(Renato Bueloni Ferreira, Heliodora, no prelo)