terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Crônica: Instante



INSTANTE


Ela saiu pisando duro. Ele aguardava-a, sereno, do lado de fora do prédio, pontual, como de hábito. Esboçou um sorriso ao vê-la caminhando em sua direção. Ela beijou-o no rosto, um beijo rápido, formal, displicente. Ele notou que algo lhe incomodava, que o dia havia sido difícil, que ela estava irritada. Ela desfiou uma ladainha de reclamações, xingou o chefe, xingou o computador, xingou o telefone que não parava de tocar, xingou o ar condicionado que estava muito gelado. Ele ouvia tudo em silêncio, atentamente, anotando mentalmente cada reclamação, cada detalhe negativo do dia dela. Ela soltou a voz e sabia que ele pacientemente ouviria cada resmungo, cada palavra indignada. Ele esperou e ela foi perdendo o fôlego.

Caminharam algumas poucas quadras, ele em mudo, atento a ouvi-la. Ela parou num ímpeto, olhou-o e perguntou meio envergonhada:

- Estou muito ranzinza hoje, né? Só reclamo!

- Você está linda! - respondeu sem hesitar, a voz firme e forte. Não foi um sussurro, mas uma afirmação, intensa, cheia de afeto e que poderia ser ouvida por qualquer um que passasse ao lado deles. Disse a frase sem receio de ser ouvido e isto a desmoronou. O sorriso meio tímido dele a aqueceu por dentro.

Ela, envergonhada, baixou o olhar e deixou sua mão procurar a dele. Ainda fria do ar condicionado, os dedos finos e delicados contrastavam com o calor da mão dele. Os dedos se entrelaçaram e de mão dadas continuaram a caminhar, sem palavras. Com a mão livre, ela tocou a ponta do nariz dele e disse:

- Só você tem o dom de me desmontar deste jeito!

Agora, era ele quem enrubescia e deixara escapar as palavras. Seu rosto brilhou com a mudança do humor dela, sentiu um leve arrepio e um júbilo interior quase incontrolável. Pensou que tudo aquilo era bom. Era bom andar de mão dadas com ela.

Ela percebeu, naquele instante, que o passado não importava. Uma hora, um dia, um mês, um ano, dois anos, muitos anos. O passado evaporara com o simples gesto das mãos unidas. O dia de amanhã, incerto também, deixou de lhe afligir. Viveu o presente, o instante, o momento. O ponteiro do relógio parecia mover-se em ritmo preguiçoso.

O instante era infinito. O instante - aquele instante - era um marco.


Um instante que lhe revelou que não estava sozinha, que alguém estava ali, por ela. Que as palavras dele eram sinceras, mesmo que ranzinza, mesmo que reclamona, mesmo que descabelada, mesmo com uma manchinha de molho de tomate que respingara do macarrão do almoço e que esquecera de disfarçar. O que importava, naquele instante para ele, era ela. Somente ela! E ele sempre a tratara assim.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Vale um post separado


Profissional liberal neste país tem que aproveitar feriado para chamar de "férias", então fugi alguns dias para aproveitar o feriado de aniversário de São Paulo.


Estou de volta e com novos textos prontos. Escritos no tempo livre, no ócio criativo e começam a ganhar o papel. Idéias que o ar campestre inspirou. Cenas banais que podem revelar algo de extraordinário, como a noite estrelada e de lua no sábado à noite. Banais, corriqueiras, mas cheias de significado e beleza. Descansar a cabeça aguça a sensibilidade e nos ensina a apreciar o simples.


Mas este post era só para agradecer os comentários e os parabéns. Acabei me empolgando. Faço questão de agradecer nominalmente àqueles que deixaram registrado seu comentário: Katia Barros, Simone, Lila, Dê, Margarete, R Lima, Flavia, Edna, Fabiola. Obrigado pelo companheirismo, pelas críticas, pelas discussões, pelas colaborações.
E Lila, obrigado pelo selo. Pode deixar que vou fazer as indicações.


Todos podem ser lidos nos links, pois são blogs que visito constantemente.


Não esqueço também daqueles que não comentam, mas que sei que passam sempre por aqui. Sem você, este blog não existiria.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

1 ano de blog

Hoje é aniversário do blog. 1 ano passou rápido e foram 305 posts sobre os mais variados temas. A idéia de fazer um blog de variedades com conteúdo diferenciado é uma realidade. Algumas boas polêmicas, afinal a unanimidade é burra e aqui todo mundo pode opinar.

Escrever e exercitar a criatividade em crônicas e textos diversos é para mim um delicioso mergulho em vidas possíveis, pois os textos - em sua maioria -, são ficcionais. Ou talvez não. Talvez a ficção imite a realidade, talvez os personagens reflitam sentimentos e sorrisos e lágrimas e alegrias e tristezas.

Neste aniversário do blog, é preciso reconhecer que deixei aflorar as palavras graças a um empurrãozinho de uma pessoa que me incentivou e incentiva a escrever. Sem este impulso de coragem, este blog não existiria. E fico feliz por ser assim.

Sei que meus singelos textos ajudam. Sei que meus singelos textos são lidos. E isto me alegra.


Para terminar este post, uma música de que gosto muito. Aliás, não só eu. Everything com Michael Bublé é uma daquelas músicas que faz viajar, como a poesia, como a boa literatura, como as amizades.

"It´s you
It´s you
You make me sing
You´re every line
You´re every word
You´re everything."

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Bem que tentei

Eu bem que tentei não falar de política e economia no blog nestas últimas semanas, mas não consigo. Sucumbi e vou voltar a soltar o verbo. Começo em tom mais leve, afinal ainda é começo de ano.

Do blog do Reinaldo Azevedo, post do dia 21 de janeiro de 2008:

"O INVOCADO

O Lula não acordou “invocado” hoje?
Vai deixar por isso mesmo? Não vai ligar pro Jorjibúxi para cobrar uma “providença”? Tem de telefonar e dizer quase em português: “Nem vem que não tem; a gente estamos brindado. Num vem tentar passar a sua crize (é um caso raro de erro ortográfico na fala...) pra nóis. Se quizer (aconteceu de novo...), eu mando o Mantega aí pra ajudar esse Bernanque, Pernaque, Pernanca, sei lá eu, porra!"
Pelo menos, dá para rir um pouco.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Carlos Drummond de Andrade : Memória

MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
estas ficarão.

(Antologia Poética. 26a. ed. Rio de Janeiro : Record, 1991, p. 179-180)

As lembranças repousam na memória silenciosa, reavivadas no escuro da noite, no caminhar solitário, na contemplação distante. A memória desabrocha no silêncio, mas não pode ser prisão que imobiliza o andar, o movimento adiante.

Drummond capta as memórias lindas, e findas, mas que sempre ficarão armazenadas e gravadas na alma.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Trechos de silêncio




"(...) Não, é um triste light. Depois, segue-se uma pausa. Para que reparemos como o silêncio é algo realmente genial. Todos têm o silêncio à sua disposição, mas apenas os artistas sabem usá-lo bem, ou tão bem. Mozart, neste caso, o faz como um quieto milagre de perfeição. Uma pausa como esta primeira, em 'Fantasia', depois daquela introdução vaga, serve para nos dar a consciência de como o vazio é repleto do divino. Sete segundos, de puro nada, e começa de novo a melodia, desta vez de forma mais delicada.(...)"


(Fernanda Young, Tudo que você não soube. Rio de Janeiro : Ediouro, 2007, p. 49)




O silêncio tornou-se um bem estranho, escasso na vida moderna, e talvez por isso, muito precioso. Invariavelmente, volto para casa dirigindo no silêncio. Não ligo o rádio. Vou ouvindo ou 'conversando' com meus pensamentos. Pensamentos silenciosos que talvez só eu ouça, que talvez não sejam sentidos - ou talvez sejam 'ouvidos' à distância -, mas que transportam-me para longe. Abstraio o trânsito, o cansaço, as contrariedades do dia.



O silêncio faz-me flutuar, leva-me a locais distantes, a imaginar rostos e sorrisos, a sonhar, a apreciar a beleza oculta da cidade. E é sempre um perceptível que este aparente vazio "é repleto do divino." Rejuvenesço nestes momentos que são energizadores.


Final de tarde é momento de refúgio. É momento de silenciar, de dedicar tempo ao que vale a pena. Recuso-me a atender o celular ou o telefone do escritório. Desfruto do silêncio, mas que jamais é solitário. Insipiro-me no silêncio e escrevo. Alguns textos para o blog, outros textos pessoais. E sei que o silêncio dá frutos, como a semente lançada na terra. Frutos, por vezes, invisíveis, mas sempre alegres e formosos. Frutos que ganham forma de palavras e o silêncio ganha vida.


Silêncio que nutre a alma de bons sentimentos e que dá coragem para compartilhar os bons sentimentos. Silêncio que é rico e iluminador. Silêncio que permite refletir e compreender um pouco deste mistério que é a vida. Silêncio - o seu - que convida-me a te entender, a me preocupar, a estar do seu lado.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Fernanda Young merece ser lida


Vou seguir o fio da meada, mas deparo-me com dois caminhos. Poderia continuar a falar da pressa, de paciência e de tempo, mas vou deixar isto para uma crônica. Vou optar por falar da Fernanda Young.


Quando Fernanda Young participava do Saia Justa, achava-a chata, antipática, desagradável. Criei birra dela. Até que um dia assisti a seu programa no GNT, Irritando Fernanda Young (3as. às 22:30). Mudei de opinião e tenho que reconhecer que meu juízo estava completamente errado. Virei fã de carteirinha dela, do seu talento e de sua inteligência.


Ao dar uma entrevista ao Caderno 2 do Estadão, Fernanda Young afirmou que escrevia para afastar a melancolia e que escrever romances é o que faz melhor.


Então, comprei um livro dela. Tudo que você não soube é seu último romance, publicado pela Ediouro (há um ótimo post sobre o livro no Salto Agulha).


Terminei o livro ontem e adorei. Um livro que faz pensar. Uma mulher - o nome da narradora não é revelado - escreve ao pai que está morrendo. Ela conta sobre sua vida, como se estivesse sentada no divã. Fiquei com a sensação de que presenciava uma sessão de análise. Ela reflete sobre os fatos de sua vida. Conta detalhes escabrosos de como atacou a mãe com um martelo, do tempo que ficou presa e de como voltou a viver. Seria ela um monstro ou teria sido levado a cometer ato tão brutal pelo desprezo do ambiente familiar? A conclusão depende de cada um.


Não é um livro leve, mas também não é graficamente violento. A violência da agressão à mãe é contraposta com a violência sutil do desprezo dos pais pela filha, da forma como a mãe rejeitou a filha. A narradora revela que a morte da irmã foi a causa de tamanha rejeição. Jamais sentira-se amada e querida no ambiente familiar e isto a levou ao consumo de drogas.


A regeneração da narradora pode causar certa perplexidade, mas ela revela uma profunda melancolia ao longo da narrativa, o que faz o leitor automaticamente relacionar a autora com os fatos narrados. A obra é de ficção, mas a correlação é inevitável.


Um livro que vale a pena pois conduz o leitor a refletir sobre sua própria vida, sobre seus segredos, sobre a melancolia, sobre o passado e o presente.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Duas interpretações

Este post é continuação do anterior. A música Grand Hotel, do Kid Abelha, é conhecida da nossa geração e de fãs mais novos da banda.

A bela letra trata de um amor que se desgasta com o tempo. Um relacionamento que atropelado pela rotina perde sua vibração, sua intensidade, seu colorido. É o amor que se transforma em "bom dia." Um relato fiel da dura realidade ou um alerta? Seria o tempo um inimigo do amor, um inimigo que aos poucos vai esgarçando o tecido de algo íntimo?

Não sei a resposta. Sei que o tempo e a rotina tornam têm o poder de transformar qualidades em defeitos, de mudar gestos engraçados em motivos de implicância, de arrancar máscaras disfarçadas pelo torpor da paixão. O tempo pode ser um aliado para a solidificação de um relacionamento, mas também um inimigo silencioso. Como ondas que se chocam com um rochedo, até despedaçá-lo.

O tempo nos faz deixar de apreciar certas coisas, tomados pela rotina e a correria da vida. A música Epitáfio, dos Titãs, trata um pouco da pressa na vida, da pressa em fazer coisas demais, em querer tudo no nosso tempo e não no tempo das coisas.




"Queria ter aceitado as pessoas como elas são"

Talvez uma música possa puxar a outra e servir de pano de fundo desta divagação. As duas falam do tempo, da pressa e de não saber olhar para o outro. E é este não saber olhar para o outro que destrói o relacionamento. O tempo, por vezes, dá mais uma chance, uma oportunidade de se vencer a inércia que se instala no relacionamento. Mas é implacável quando se forma um abismo intransponível.

Fernanda Young, ao entrevistar Paula Toller em seu Irritando Fernanda Young (programa excelente), perguntou para a cantora se um amor que se transforma em bom dia não é algo bom. Nunca tinha olhado a música Grand Hotel desta forma, ou sequer tinha parado para pensar nesta frase como algo positivo.

Paula Toller respondeu que o amor transformado em bom dia é um amor cheio de respeito pelo parceiro, por quem está do seu lado. E respeito e admiração fazem com relacionamentos durem longos períodos de tempo. Para certas coisas, não é preciso pressa. Uma visão positiva, uma visão diferente daquela que usualmente temos da frase.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Uma música...

Grand' Hotel é uma antiga música do Kid Abelha. A letra é de Paula Toller e George Israel.

"Se a gente não tivesse feito tanta coisa
Se não tivesse dito tanta coisa
Se não tivesse inventado tanto
Podia ter vivido um amor grand' hotel

Se a gente não dissesse tudo tão depressa
Se não fizesse tudo tão depressa
Se não tivesse exagerado a dose
Podia ter vivido um grande amor

Um dia um caminhão atropelou a paixão
Sem teus carinhos e tua atenção
O nosso amor se transformou em "bom dia"

Qual o segredo da felicidade
Será preciso ficar só pra se viver
Qual o sentido da realidade
Será preciso ficar só pra se viver

Se a gente não dissesse tudo tão depressa
Se não fizesse tudo tão depressa
Se não tivesse exagerado a dose
Podia ter vivido um grande amor

Um dia um caminhão atropelou a paixão
Sem teus carinhos e tua atenção
O nosso amor se transformou em "bom dia"

Qual o segredo da felicidade
Será preciso ficar só pra se viver
Qual o sentido da realidade
Será preciso ficar só pra se viver
Só pra se viver
Ficar só "

O vídeo é da gravação do CD Acústico MTV.



Pois bem, aonde quero chegar? Aguardem o post seguinte.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Crônica: Resolução de Ano Novo


RESOLUÇÃO DE ANO NOVO

Sei que não te ajudo com meu silêncio, imerso nos meus pensamentos, mantidos somente para mim. Sei que sabes que penso em você, mas ao não externar coisas que me parecem tolas, pareço distante e indiferente. Penso em você o tempo todo. Isto é fato. Fato que deixo subentender nas minhas ações, mas que não digo de forma suficiente. Escrevo-lhe as coisas que habitam meus pensamentos, mas as escondo. Escondo as mensagens, escondo os sentimentos, escondo meu interior. Por vezes tenho vontade de te ligar e marcar um encontro para um café no meio da tarde em algum canto da cidade. Não deixaria sequer que me dissesse "oi", pois te supreenderia com um beijo roubado. Assim mesmo, de sopetão, de supresa, para sentir teus lábios tocando os meus. Sem ensaios, sem rodeios ou dúvidas. POW! Não te daria tempo de reagir. Seria rápido no gatilho, meio desajeitado, mas tentaria. Somente te beijaria e esperaria ser correspondido com um abraço e o prolongamento do beijo, mais intenso. Um beijo que faria teu coração disparar, que te faria flutuar e arrepiaria tua pele morena. Sentir sua surpresa, mas ao mesmo tempo alegria, entrega e sucumbiria nos meus braços aos meus sentimentos.

Mas isto é pedir demais de mim, um pobre tímido. Tudo ainda é sonho. Calma, uma coisa por vez. Ainda chego lá. Resolvi que neste ano que inicia vou te escrever tudo que se passa na minha cabecinha. Vou extravasar os sentimentos. Vou encher sua caixa postal com emails, ainda que com mensagens tolinhas e bobas. Se for a uma loja e encontrar uma vendedora com teu nome - como aconteceu ontem -, vou te contar que lembrei de você. Se ouvir uma música que você gosta, vou falar que pensei em você.

Minha resolução de ano novo é esta: vou te contar meus sentimentos. Vou te convidar a entrar no meu mundo interior. Vou arriscar. Sabe por quê? Porque você vale a pena e não posso mais perder tempo com meus devaneios. Quero dividi-los com você.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Ano Novo


Gosto de separar bons trechos de livros para dividi-los com os leitores. Este trecho é do Diário da Noite Iluminada, de Josué Montello.


"1o. de janeiro de 1979


Depois de termos visto findar algumas dezenas de vezes o ano-velho, há um processo fácil para saber se ainda não envelhecemos por dentro: é descobrir em nós o sentimento da alegria e da esperança, no momento em que desponta o ano-novo, com seu alarido de luz e cores.


O ano-novo, que aqui está a dar os primeiros passos, merece que o acolhamos de rosto aberto. O ano-velho, que ontem nos voltou as costas, a caminho da Eternidade, cumpriu seu ofício. O novo, com seu carregamento de surpresas, ainda não disse a que veio. É cedo para fazê-lo. Ainda traz em si a expectativa da novidade. Será bom? Será ruim? O que sabemos é que será ele próprio, na configuração que lhe der o futuro - com a nossa colaboração." (Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1994, p. 95)


Feliz 2008 a todos, com muita esperança e forças renovadas!