terça-feira, 22 de novembro de 2016

Conto: Olhar Furtivo



OLHAR FURTIVO


Foi ela quem primeiro puxou papo. No mundo conectado por aplicativos, solitários vagam pelos corredores e vitrines do mundo virtual usando seus celulares como instrumentos de caça. Feito o match, ela não tardou a chamá-lo. Ele preferia esta virtualidade, que domava sua timidez sufocante. Se a encontrasse num café, lendo um livro, sozinha, não puxaria assunto. Ficaria com medo, desviaria o olhar constrangido. Poderia ser considerado assédio, abuso, uma conduta inapropriada, não saberia nem como começar a conversar. Um simples "oi" poderia ser tido como ofensivo, ainda mais se ela fosse uma feminista, empoderada, daquelas que luta contra a cultura do estupro, que grita aos quatro cantos "meu corpo, minhas regras", que vê golpe em cada decisão judicial que reafirma a Constituição, que proclama "Fora, Temer", mas no fundo da alma, sente um desejo enorme de não pensar assim.

Foi ela quem soltou o primeiro "oi" e ele respondeu. Ela logou alertou: "sou de esquerda!". Assustou-se, mas aqueles olhos castanhos sorriam-lhe. Engoliu seco e deixou a serenidade tomar-lhe a alma. Ela pensava de forma diametralmente oposta à dele, mas havia algo que aplainava as ideias tão discrepantes. Em meio à ebulição política dos tempos de impeachment, ele foi cauteloso com as palavras. Evitaria temas políticos e tentaria decifrá-la. Marcaram um primeiro encontro.

 - Não gosto de italiano. Prefiro algo mais leve no almoço.

Versátil em termos gastronômicos, a culinária pouco lhe importava. Queria desvirtualizar a conversa e deixaria que ela escolhesse o lugar. A curiosidade, tão própria nas mulheres, estava aguçada e começara a montar, peça por peça, o perfil da bela mulher cujo caminho cruzava o dele.

Ela se atrasou. Ele tinha certeza que isto ocorreria. Errara o caminho, avisou pelo celular. A espera tem sempre o condão de aumentar a expectativa. Tentou manter-se calmo, composto, sereno, domando a ansiedade.

Quando ela chegou, apressada, desculpando-se pelo atraso, ele sorriu, "não tem problema, não tinha mesa, sentei faz pouco" - uma leve mentira para amenizar o atraso. Começou a narrar que havia subido a Consolação, ao invés de vir pela Campinas e que o trânsito na Santos estava horrível. Ele observava cada gesto, cada palavra, divertindo-se com as explicações dela como se ele fosse algum dignatário importante, mas para ele, quem fazia o favor de estar ali era ela a compartilhar com ele o almoço.

Deixou-a falar, contando do trabalho, das pesquisas, das viagens. Com olhar furtivo, quando ela mirava pela ampla janela do restaurante, ele reparava nos seus cabelos, no sorriso contido, nas unhas pequenas, nas curvas do rosto, nos óculos que ajeitava com charme natural. Discreta, contida, mas vibrante. Cada palavra era dita com intensidade, uma vivacidade que ultrapassava a mera vibração das cordas vocais e preenchia o ambiente com fogo. A indignação não se media pela frustração com o que destino lhe oferecia, mas em como teria de lutar para mudar o presente e assim construir um futuro muito diverso do atual.

Ela não discursava, falava com fluência e segurança, sorrindo de forma esporádica, com um toque melancólico. Talvez cética fosse a palavra mais adequada a descrever o estado de espírito dela. Estava desacreditada do que acontecia no país. Esbravejou contra a professora que lhe roubara o projeto de pesquisa sem a menor cerimônia e ele notou o desgosto disfarçado pelo discurso de fatalidade.

- Coisas do mundo acadêmico! - desabafou.

Percebeu que sentia enorme prazer naquele diálogo, em ouvir cada narrativa, cada reclamação, cada crítica, cada comentário. Manteve-se receptivo, mas muito reservado. Deixava o olhar ser seu único instrumento invasivo. Quando ela ajeitou os cabelos longos, perdeu-se por alguns segundos contemplando o ombro esquerdo desnudo, quando a blusa escorregou e revelou um pouco mais da pele. Imaginou a textura, o cheiro, a temperatura, mas logo se recompôs do devaneio que claramente seria inadequado a este encontro. Ao menos no primeiro encontro, pensou.

Na despedida, na calçada movimentada, barulhenta, poluída da metrópole, olhou-o nos olhos e disse com firmeza:

- Não vai sumir!

E abraçou-o, delatando o grito silencioso de fragilidade, a súplica que tentara esconder, mas que a mão acariciando as costas dele denunciavam. O enlace dos braços lhe dava um confortante sentimento de segurança, carinho e afeto que ele deixara transparecer e agora confirmava com o demorado abraço. A solidão se esvaia e o vazio era preenchido.

- Não vou sumir. - respondeu acolhedor. E ela, depois daquele encontro, mudou-se para a França.