segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Conto: Xícara Verde


XÍCARA VERDE


Ofereceste-me uma xícara de café. Quente e forte, numa xícara enorme, verde, uma xícara de chá que serviria para café. Adquiri este meu hábito quando trabalhei nos Estados Unidos: tomar café em xícara grande. Não cheguei ao cúmulo de abandonar o café forte e aderir ao café aguado, mas simplesmente aumentei a quantidade.  Visitava-lhe a pretexto de lhe mostrar alguns textos recentes e discutir uma ideia que surgira para um livro. Fazia tempo que não nos víamos e ansiava por poder deixar o tempo da tarde correr sem hora em companhia dela, sem ter o ponteiro do relógio como carrasco.

Observei os belos olhos castanhos a percorrer as páginas, enquanto tentava adivinhar seus pensamentos, sua crítica, sua impressão, sua reação, um eventual elogio, algum sinal, alguma emoção. Esboçaste um leve sorriso ao ler uma frase perdida no texto. Tranquilizei-me. Senti uma alegria interna, contida, mas uma leve aceleração do ritmo cardíaco persistia.

Distrai-me quando ajeitaste uma mecha de cabelo que caíra-lhe sobre o rosto, empurrando-a por detrás da orelha. Percebi o brilho do teu olhar, a vivacidade e a beleza tranquila de um rosto jovem, que escondia com maestria a idade verdadeira. Sem tirar os olhos do papel, tomaste um gole de café. O café era um momento sagrado e o silêncio que dominava o ambiente transmutava a literatura num ato quase religioso. Não a interrompi. Esperei pacientemente imerso numa longa admiração de seu rosto.

Sobre o centro da mesa, havia uma pequena vasilha com grãos de café torrados e cujo aroma só era percebido quando se aproximava o olfato da peça de decoração. Cada grão parecia representar os inúmeros segredos que compartilhávamos; cada grão era um ano de uma amizade talhada nas palavras, na escrita e na paixão pela leitura.

O sol se punha e uma leve penumbra abraçava o ambiente. Só então, ao ler a última folha, olhou-me com um sorriso. Não havia necessidade de palavras; antes de falar tinha a certeza de que havia gostado do texto. Como tantas outras vezes, bastava um olhar para que nos entendêssemos. Desta vez, porém, estava determinado a quebrar o silêncio e a romper a barreira do temor. Não arredaria o pé daquela aconchegante casa sem antes derramar meu coração sobre mesa. O tempo não seria mais complacente comigo.



sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Olhar atento


By Ana Luiza

Minha filha me pede o celular emprestado. Sei que este pedido originará uma foto. Ela tem um olhar atento, um olhar que ultrapassa o simples objeto, e que de forma criativa, vislumbra a poesia e a delicadeza do cotidiano nas pequenas coisas. 

No meio da flor, um pequeno coração, silencioso, discreto, aguardando um olhar atento. Basta um olhar atento para algo tão singelo desvendar uma beleza divina.


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Um telefonema de José Dirceu


- Alô, Fidel? Tudo bem? Aqui é o Zé Dirceu!

- Que alegria ouvir-te, companheiro. Que contas?

- Estou pensando em te fazer uma visita.

- Que bueno! Quanto tempo pretende ficar?

- Uns dez ou doze anos...

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Conto: Cristal

Cristal - Bajofondo Tango Club




Cristal


Uma estranha melancolia tomou-lhe de assalto naquele final de tarde. Ainda estava claro, o sol recolhia-se preguiçosamente no horizonte. Resolveu caminhar dispensado a estação de metrô bem próxima do escritório no centro da cidade. Olhar ausente, quase monástico, passos lentos e sem a jovialidade que lhe era característica. Seu estado de espírito contrastava claramente com a notícia que recebera do chefe durante o almoço: ganhara a promoção, o cargo almejado durante os últimos dois anos era dele. Teria que se mudar para os Estados Unidos, mas aliaria novos desafios a um programa de MBA em Boston. O que mais poderia querer? Não era este o sonho de todo profissional jovem e ambicioso?


O vazio insistia em lhe rondar a alma. A vida, infelizmente, revelava-se binária, sem um cardápio de cores, tons e matizes variados como uma cartela de loja de tintas com suas amostras. A tinta revela-se na parede diferente do mostruário, assim como a realidade desejada nem sempre tem o doce sabor do sonho quando se materializa.


A decisão fácil era a improvável; a decisão difícil era impossível.


O caminho parecia não lhe oferecer alternativa. Teria que seguir no trilho que o destino lhe condenara. Não havia escapatória, nem tampouco alternativa. Resignado, conformou-se, sem os lamúrios do tango ou dos fados que seu pai tanto adorava e que ouvira repetidamente na infância.


Entrou no apartamento, beijou a testa da mãe após afastar-lhe os cabelos com a mão. Seus olhos buscaram os dele com ternura perceptível apenas por ele. Palavras não eram ditas por ela desde o grave derrame. Permanecia silente e paralisada na cadeira de rodas.


Dispensou a enfermeira. A noite era o turno que lhe cabia há quatro anos. Num pequeno cálice de cristal deu-lhe um gole de vinho do Porto. E sucessivamente, até o final da taça. O único prazer que insistia em dar à mãe religiosamente todos os dias.





NOTA: O texto surgiu a partir da música Cristal, do Bajofondo Tango Club, num exercício de escrita. Deixe a música servir de trilha sonora a estória.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Uma eleição sem graça

Masp - (c) Visão ao Longe


Sempre fui um eleitor altamente politizado, participativo, empolgado. Vejo e escuto o horário eleitoral, consulto os sites com os programas de governo e decido meu voto. Desde os tempos de faculdade ajo assim, se bem que naquela época a participação nas campanhas era muito mais efetiva. Nunca votei em branco ou nulo, pois considero tal conduta uma idiotice, uma omissão inescusável do cidadão. Apenas uma vez, no segundo turno da eleição presidencial de 1989, fiquei em dúvida e fui tentado a votar nulo. Votei em Collor, pois votar em Lula seria inimaginável - naquela época e mais ainda hoje.

Neste ano, porém, sinto uma mesmice impressionante, uma falta de criatividade e de propostas que possam realmente alterar alguma coisa na cidade de São Paulo.

Vejamos alguns exemplos:

1. Educação - todos falam em rever a progressão continuada e implementar a educação em tempo integral. Chalita, Haddad, Russomano, Serra e Paulinho defendem esta ideia. O que os candidatos entendem por educação em tempo integral. Haddad, em entrevista à Rádio Bandnews FM, disse que pela manhã os alunos terão o currículo normal e durante à tarde irão para passeios no parque, visitas a museus, "ocupação de espaços públicos" (seja lá o que isso quer dizer em linguagem petista), esporte, cultura e lazer. Chalita diz praticamente a mesma coisa, acrescentando artes, inglês e espanhol.

Em suma, o tempo integral signfica que as escolas serão um depósito de crianças no período da tarde. Acho isto grave considerando que Haddad foi ministro da Educação e Chalita foi secretário estadual de Educação. Não há proposta que reformule o ensino fundamental. Não há coragem na proposta dos candidatos. 

Ninguém fala em ampla reformulação do currículo com capacitação e treinamento de professores. Ninguém fala em ampliar o tempo de ensino das matérias básicas (português e matemática). Não adianta levar o aluno ao parque se ele não sabe ler e escrever corretamente. 

2. Saúde - novamente a coisa se repete: vamos construir mais hospitais e postos de atendimento, que agora se transformaram em siglas. Os candidatos só falam em AMA, AME, UPA etc. Adianta construir mais se não há médicos bem remunerados e com estrutura para atendimento?

3. Transporte - unanimidade neste ponto também: vamos construir mais corredores de ônibus. E daí? Isto vai resolver o problema? Quase todos mencionam mudanças ou ampliação do bilhete único, mas isto não afeta em nada a mobilidade e a melhora no transporte. Nenhum candidato falou em melhorias no sistema semafórico ou em invenstimentos na CET (Companhia de Engenharia de Tráfego).

4. Segurança - a competência para tratar de segurança pública é dos estados, e não do município. Mesmo assim, quase todos propõem a reformulação e ampliação da guarda civil metropolitana para que atue como se fosse a polícia militar.

5. Emprego para o bairro - alguns candidatos em São Paulo vieram com esta ideia de levar o emprego para o bairro. Em outras palavras, criar incentivos para que empresas se instalem nos bairros, permitindo que o trabalhador more mais perto de onde trabalha. A ideia é boa e parece ser um pouco mais inovadora, mas ninguém fala como isto será feito. Isenção de impostos? Benefícios fiscais? 

No final das contas, a eleição para a Prefeitura de São Paulo ficou sem graça, sem propostas, sem debate sério. Lula tenta transformar a eleição em uma batalha para tentar conquistar um cargo para seu fantoche. Russomano desponta como a surpresa, mas já dá sinais de que não sabe debater, de que não tem plano de governo e nem propostas viáveis. Serra repete a conhecida ladainha de sempre, mas não inspira mais a confiança do passado. Chalita tem uma propaganda meiga, sensível, que talvez funcionasse para um cargo de deputado ou senador, mas não para um cargo executivo. Soninha continua fazendo a linha bicho grilo hipster, defendendo a bicicleta, com uma trilha sonora meio apocalíptica e fúnebre. E há os outros.

Infelizmente São Paulo está sendo mal tratada pelos candidatos que parecem não se preocupar com a cidade a ponto de não se debruçarem sobre seus problemas mais graves. Cabe ao eleitor decidir. 

No domingo, pense bem em que você vai votar. Mensaleiro já lhe enganou uma vez e vai tentar te enganar de novo. Não vote em mensaleiro ou em quem usurpa o dinheiro público em proveito próprio, vote em um candidato no qual você pode confiar.