quinta-feira, 7 de março de 2024

Conto: Esquecida

 



The bridge at Herndon, Virginia - @rbueloni



ESQUECIDA


Eu me chateio. Ainda. Talvez não devesse mais, após 32 anos, mas eu havia pedido para tirar a calça de cima da cama antes dela deitar e apagar a luz do quarto. Era um pedido singelo, objetivo, direto. Bastava pendurar a calça no cabide ou deixá-la sobre a cadeira no canto do quarto. Mas ela ignorou meu pedido. Passou em branco. Aquele momento onde o ignorar se confunde com o esquecer e transforma-te em um ser invisível. Muita coisa passava em branco e cada vez com maior frequência.

 

Pedia para comprar pasta de dente no supermercado, ela esquecia. Pedia para pegar dinheiro no caixa eletrônico, ela esquecia. Perguntava se podíamos jantar com amigos, ela esquecia que iria trabalhar. E assim os dias se seguiram, um após o outro. Não me irritava, mas apenas me chateava e notava o esquecimento que recaía sobre mim. Estava sendo esquecido, abandonado, pedacinho por pedacinho, qual um navio de partida que se afasta do porto e a praia vai diminuindo de tamanho até que o horizonte se confunde com a imensidão do mar.

 

Um dia, levei-a ao médico. Desconfiava que aquele esquecimento pudesse ser algo a mais. Não deixei que fosse sozinha e marquei a consulta. Alguns exames e dias depois, veio o diagnóstico de Alzheimer em fase inicial. Ela estava se esquecendo da vida.



segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Nostalgia

 



Fenway Park - @rbueloni


Caminhava no último sábado pela manhã numa praça perto de casa para fazer um pouco de exercício ao som de uma playlist que tenho no Spotify e que chamei de Midland Times (ou “tempos de Midland”). Midland é uma pequena cidade no meio do estado de Michigan, no norte dos Estados Unidos, onde residi por 4 anos. As músicas dos anos 1980 que compõem a lista me levaram de volta àquela pacata cidade do meio-oeste americano. Dei-me conta que no dia 31 fará exatos 40 anos que me mudei para lá, com 13 anos, falando um inglês macarrônico e débil, sem ter ideia do que iria encontrar.

Ao som de Billy Joel cantando River of Dreams, lembrei-me dos bons tempos da adolescência. Aquela música poderia ecoar do rádio do carro num dia de verão, onde Tom, Homer, Brian e eu íamos para tomar um sorvete no Baskin Robbins ou um slurpee no 7Eleven. E depois, passávamos horas conversando, ouvindo música, andando de bicicleta, vendo jogos de baseball e torcendo pelos Detroit Tigers.

Os dias de verão eram longos e quentes. Os dias de inverno muito frios, cheios de neve escuros e curtos. Mas a amizade construída naqueles anos perdurou e se manteve viva. Enquanto caminhava, relembrava do que aprendi na adolescência vivida numa cidade interiorana americana. Era eu um forasteiro, um estrangeiro. Senti o preconceito, a discriminação, os estereótipos aplicados a quem não é popular e quem não é atleta. Fui provocado a tomar decisões, a amadurecer, a escolher um rumo para a minha vida. Optei por dedicar-me aos estudos e com isso garantir uma vaga num processo seletivo de uma universidade de alto nível nos Estados Unidos. Era bom aluno e por isso ganhava a pecha de nerd, o que lhe incluía numa categoria social que impossibilitava sair com as meninas mais bonitas e populares.

 Olho com nostalgia para aquele tempo e agradeço por tudo que passei. Uma nostalgia alegre, jamais melancólica ou triste. Olho para o passado e agradeço pelo que recebi, pelos problemas que enfrentei, pelas chances e oportunidades que tive, pelas conquistas e pelos fracassos. Tudo foi um processo de aprendizado e que me levou a optar por não fazer curso superior nos EUA, apesar de ter sido aceito em Harvard, Georgetown, Boston College e na Universidade de Michigan.

Quarenta anos se passaram! Continuo vivo, mas sei que a cada dia que passa aproximo-me do fim. Gosto de refletir sobre o fim no dia de finados. Gosto de celebrar cada novo dia de vida que me é presenteado. Juntei nestes dias a nostalgia que me alegrou engatilhada pela música que despertou milhares de memórias, sorrisos, abraços, despedidas e momentos únicos,  com a lembrança daqueles tempos de adolescente. A nostalgia só me traz a certeza de que a cada novo dia, a gratidão aumenta.


PS: Não esqueça de fazer uma oração por aquele ente querido neste dia de finados. Não esqueçamos daqueles que se foram, mas que continuam vivos em nossos corações.

 


quinta-feira, 27 de abril de 2023

Cortina de ferro


by Renato Bueloni Ferreira



Sento-me às margens do rio Odra, numa tarde agradável de domingo de primavera, e tento imaginar como era a vida na Polônia durante o regime soviético.

As novas gerações têm a liberdade, algo inexistente naquela época. As novas gerações têm seus celulares, a comunicação livre com o mundo. As novas gerações têm acesso a uma universidade aberta, a programas de intercâmbio, a viajar pela Europa e explorar novos destinos.

É domingo, os sinos das igrejas badalam e as pessoas vão à missa. Avisto vários campanários de igrejas em estilo gótico, mas de tijolos à vista. As paredes externas são marrons, uma cor terrosa escura, mais sóbria e sisuda do que no sul da Europa.

Casais passeiam com crianças pequenas, há risos, jovens conversando e olhando seus celulares. Uma mulher lê algo em um Kindle. Um grupo de jovens controla um pequeno drone sobre o rio. A cidade medieval de Wroclaw abraçou a modernidade e a tecnologia sem esquecer do passado.

E como foi o passado?

Quase não há sinais do período soviético. Deparei-me com um conjunto habitacional acinzentado, quadrado, decaído que me lembrou 1984, de George Orwell. A vida devia ser triste, melancólica, sem esperança, com falta de comida, de dinheiro, de energia. A vida era controlada pelo Estado, a vida era dirigida pelo Estado, a vida era traçada pelo Estado, como um roteiro de filme onde o bom cidadão sobrevive. Entenda-se por “bom cidadão" aquele que segue as regras e se deixa escravizar pelo Estado, aquele que não critica, aquele que incensa o líder supremo.

Os mais velhos, que vivenciaram o terror, não hesitaram em dar apoio à Ucrânia e a acolher os refugiados. Os mais velhos têm a memória viva do que é perder a liberdade.

Que este terror jamais volte! 

Em tempos de tentativa de regulamentação das redes sociais, que a voz jamais seja calada, que a liberdade de opinião e de expressão continue a reinar como direito fundamental do cidadão, que o Brasil não enverede pelos negros caminhos da censura.


terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Poesia: Na madrugada

 


@rbueloni - instagram


NA MADRUGADA

Por vezes, vens me visitar na alta noite

no silêncio do sonho das madrugadas.

Alguns intensos, outros serenos e plácidos,

alguns sem sentido, outros a revelar verdades

marcantes e ao despertar,

o intenso batuque na caixa torácica

o arrepio latente, o sorriso discreto no rosto

invisível na escuridão pesada.

 

Por vezes, a chuva me acorda ao tocar na janela

teu corpo desnudo ao meu lado

envolto nos lençóis desarrumados.

Deixo a manhã preguiçosa invadir

e apenas te observo - calado.

Tuas costas, teus cabelos, tua respiração.

Desenho mapas e paisagens na tua pele

ligo os pontos e imagino tatuagens

a ponta dos dedos é meu pincel

tuas costas, a tela para minha aquarela.

 

Por vezes, interrompo o sonho com um beijo

a realidade a bater na porta, o alarme do relógio

a luz do sol intrusa a adentrar o quarto

revelando a verdade,

revelando que estou só.


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Poesia : desamei

 



@carolinepaternostro



DESAMEI

Amei
desarmei
o coração esvaziou-se
Desamei.

Não restou cicatriz
ou vestígio
Desaguei.
Era amor?






terça-feira, 31 de maio de 2022

quarta-feira, 17 de março de 2021

Trechos: Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre

 

quarentena em SP


Publicado pela primeira vez em 1795, o breve livro de Xavier de Maistre (1763-1852) é um exercício de risonha subversão de hierarquias, sejam elas militares, metafísicas ou literárias. Zombando das circunstâncias, o autor transforma os quarenta e dois dias de castigo em ponto de partida para uma paródia dos relatos de viagem, algo que se encaixa muito bem em tempos de quarentena, lockdown e pandemia.

O breve livro foi minha companhia no mês de setembro de 2020, enquanto passava os minutos, as horas, os dias ao lado de minha mãe em um leito de UTI em São Paulo.

Eis alguns trechos:

"As horas deslizam sobre nós e se precipitam em silêncio pela eternidade, sem nos fazer sentir sua triste passagem." (p. 13)


"Uma cama nos vê nascer e nos vê morrer, teatro inconstante em que o gênero humano encena, dia após dia, dramas interessantes, farsas risíveis e tragédias espantosas. - A cama é um berço enfeitado de flores; - é o trono do amor; - é um sepulcro." (p.14)


"Essa vantagem me fez desejar que se inventasse um espelho moral, em que todos os homens pudessem se ver com seus vícios e virtudes. Cogitei mesmo propor a alguma academia que instituísse um prêmio por tal descoberta, quando reflexões mais maduras me provaram sua inutilidade." (p. 42)

(Maistre, Xavier de. Viagem ao redor do meu quarto. trad. Veresa Moraes. São Paulo : Editora 34, 2020)





terça-feira, 17 de novembro de 2020

Conto: O bilhete

 


O bilhete

Gosto da sua letra, do jeito que deitas o traço firme sobre o papel imaculado, desenhando letras e mais letras de forma decidida, com os olhos de jaboticaba fixados na ponta da caneta que desliza sobre a superfície. O texto ganha forma, corpo e apenas te observo enquanto escreves. Caprichas na forma como cortas a letra t. Os is trazem um pingo certeiro. A escrita flui como se a pergunta formulada na prova já tivesse sido pensada e respondida mentalmente antes de iniciares o texto. Sento-me sobre a mesa do professor para poder contemplar a letra que mais se parece com uma pintura. Talvez seja uma grande besteira este meu devaneio banal. Quem se encanta com uma letra? Não sou professor de caligrafia e nem professor de português, muito menos calígrafo, mas como é bom receber uma prova onde não é preciso decifrar garranchos e hieróglifos. Deveriam incluir um curso de arqueologia egípcia na formação do professor para que pudéssemos ler as provas de alguns alunos. Bem, estou eu divagando novamente. Quanta besteira, professor! Ninguém mais vai fazer prova escrita a mão. Em breve, tudo será digitado e as belas letras caprichadas se perderão, cairão num buraco negro, no esquecimento eterno. Ah, mas como eu gosto de admirar a tua letra em bilhetes que guardo com enorme carinho.


Remexer gavetas é uma atividade de risco, ainda que pareça algo tedioso e despido de periculosidade. Há sempre o perigo de ressuscitar memórias adormecidas, inertes em algum recanto da mente - ou de um baú. Basta encontrar algo para que aquele artefato solte algum gás tóxico que estava congelado no objeto e desperte e provoque as mais diversas sensações, sorrisos, lágrimas, raiva. Uma carta. Uma foto. Uma receita gastronômica. Uma música. Um perfume. Um ingresso de cinema. Um bilhete.


O bilhete ainda trazia o clip de metal preso na parte superior, mas se separara do papel onde estava preso originalmente. O recado desprendera-se do trabalho de conclusão de curso de Joana, que analisou o projeto do Edifício Guaimbê, de Paulo Mendes da Rocha e sua influência na arquitetura residencial paulista. Lembro-me que fui tomado de grande surpresa quando a morena, um tanto debochada e que parecia entediada nas minhas aulas de História da Arquitetura Brasileira, escondida por detrás dos longos cabelos castanhos escuros e que deixava cair sobre o lado esquerdo do rosto, um toque de charme - ou talvez uma timidez disfarçada. Nunca soube ou certo. Lecionava no início do 3o. ano, 5o. semestre e muitos tinham minha disciplina como algo inútil, mera perfumaria para preencher a grade curricular. Aqueles que se dedicavam a minha disciplina e compreendiam a importância da história para a arquitetura, despontavam, mais adiante, como profundos observadores da realidade urbana brasileira. Posso me orgulhar de alguns alunos que orientei, sem dúvida, mas quando Joana me abordou no final do terceiro ano, na minha sala acanhada perto da biblioteca da faculdade, tive a nítida impressão de que ela havia me confundido com outro professor.  Algo que não seria estranho, pois sou um tipo comum, sem as excentricidades dos grandes professores de arquitetura. 


A proposta de trabalho de conclusão de curso tinha consistência e o tema estava circunscrito à minha área de pesquisa. Ela se mostrou mais preparada do que imaginava. Tentei puxar pela memória as notas dela na minha disciplina, mas não era nada que me despertasse um traço natural de genialidade. Era, assim como eu, uma aluna comum. Pareceu-me esforçada e teceu-me elogios que me fizeram ruborizar. Olhei-a com um olhar diferente a partir daquela primeira conversa. 


Ela se empolgou com o tema. Fizemos vários encontros na faculdade, alguns coletivos, outros individuais e aqueles olhos de jaboticaba despertavam um encanto que achava esquecido, perdido no tempo em algum lugar do passado. Paixões platônicas são verdadeiros narcóticos, entorpecem o ser, pintam a realidade de tons pastéis, estampam um sorriso quase permanente no rosto do viciado. Com tantos anos de vida acadêmica, não era a primeira vez que era acometido por esta síndrome platônica. Nas outras vezes, o silêncio não havia sido quebrado e o segredo restou guardado em alguns cadernos que usava como diários. Desta vez, porém, resolvi deixar florescer minha atração. Esperei a banca e o resultado. Fora aprovada e meus colegas desfiaram longos elogios à jovem arquiteta, agora recém formada. Enchi-me de orgulho e satisfação.


Alguns dias depois, convidei-a para jantar com a justificativa de comemorarmos o êxito do trabalho. Ao final de um agradável encontro, declarei-me. Ela ficou incomodada. A reação dela me deixou desgostoso. Pensei se minhas palavras poderiam caracterizar alguma forma de assédio, de pressão indevida. Um calafrio percorreu minha espinha e fui tomado de um sentimento de pânico. Minha carreira, meu prestígio, meus longos anos na academia. Tudo passou pela minha cabeça enquanto ela simplesmente passava o dedo pela borda do guardanapo de pano e tentava desfiar algumas palavras para trazer-me de volta a realidade. Um choque de realidade, sim, era isso que recebi naquele final de refeição. Envergonhado, as palavras me faltaram. Ela agradeceu o jantar, levantou-se e pediu um Uber. Não seria eu a levá-la de volta para casa. Não seria eu a provar o gosto daqueles lábios. Não seria eu a modificar o entorpecente em realidade viva. 


Daqueles dois anos de convivência mais intensa, além de meus delírios e devaneios, restou apenas o bilhete que ela escrevera e prendera no trabalho final do curso.




quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Conto: Entre corpos

 



ENTRE CORPOS


O ônibus não estava lotado naquela manhã, igual a todas as outras. Passageiros se alinhavam de forma assimétrica diante de mim, ao percorrer com os olhos a massa humana, fui arrebatado por algo inusitado. Entre braços e corpos, formava-se um espaço onde podia avistar um pescoço longilíneo, delicado, que desaparecia numa cortina de cabelos loiros. Lembrei-me de Rodin e de seus estudos das partes do corpo. Aquele pescoço seria um modelo perfeito para uma escultura do mestre francês. Como abelha atraída por uma bela flor repleta de pólen, vi-me abobalhado a admirar aquela obra de arte em forma humana. Confesso que alguns pensamentos mais sensuais me cruzaram a mente, mas aquele não era o lugar para ter estas vibrações. Era sensual, sim, não havia dúvida, mas desde quando um pescoço se tornara algo sensual para mim? Achei divertida aquela reflexão sem tirar os olhos do pescoço da bela moça.

 

A gola branca, de blusa discreta, realçava a pele amorenada que não escondia algumas pintas e uma pequena marca de nascença em forma de meia lua, bem clara, quase imperceptível. Meu olhar aguçado não poderia deixar desenhar estrelas naquelas pintas que dançavam ao redor da lua. Dois colares com correntes finas e douradas acariciavam o entorno do pescoço e repousavam sobre o colo. Alguns fios de cabelo escondiam o que seria um alvo predileto de um vampiro, que se refestelaria com uma larga mordida, a transformar a bela moça em sua seguidora noturna. Seria eu um vampiro que agora despertava diante daquele pescoço que me atraía de forma estranha e inexplicável? Teria eu algum sangue de antepassado vindo da Transilvânia ou aparentado do Conde Drácula? Ou seria algum personagem daquela série de livros de adolescentes vampiros Crepúsculo? Quase ri alto com tanta besteira a rondar minha mente com pensamentos desconexos.

 

Mas afinal, entre aqueles braços e corpos, só conseguia avistar o pescoço, um pedaço da orelha que não estava coberta pelos fios loiros e uma leve curvatura do maxilar a iniciar o desenho da face. Ela parecia hipnotizada pelo celular, totalmente alheia à minha presença e meu olhar fixo. Meu interesse passava despercebido. Quando chegou minha hora de descer do ônibus, lancei um olhar acrescido de um sorriso terno, mas ela me ignorou. Quem sabe amanhã, tomaria o mesmo ônibus. Quem sabe amanhã, poderia perguntar seu nome. Quem sabe amanhã, ela me olharia nos olhos.


segunda-feira, 29 de junho de 2020

Apagaram os sorrisos






Veio a pandemia e decretaram uma longa quarentena. Era para ser por quinze dias, depois mais quinze, viraram 60, adicionaram mais um mês e o pico parecia inalcançável. Até hoje acho que ainda não chegamos lá, mas resolveram que já era hora de permitir um afrouxamento, um lento despertar da cidade adormecida.

O período de hibernação dos ursos deve ser assim, salta-se do carnaval para as férias de julho, sem Páscoa e sem festa junina, e adicione alguns feriados que foram devorados pelo vírus por decisões políticas. Transitar por São Paulo, após escurecer, é como caminhar por uma cidade semideserta, quase fantasma, com ar soturno, tristonho. O trânsito evaporou, não há carros, não há pessoas, não há ruídos. O silêncio impera e traz à memória uma cidade de interior, pacata, tranquila, silenciosa.

Aos poucos, há uma reabertura. Pessoas voltam a circular pelas ruas ao longo do dia, mas há algo de diferente. Apagaram os sorrisos. Olhe para a foto de um rosto e cubra a parte abaixo do nariz e o queixo. É praticamente impossível dizer se a pessoa está sorrindo, se a pessoa está triste, se a pessoa está nervosa. Perde-se a expressão quando escondem a nossa boca por detrás de uma máscara.

Não estou aqui a me revoltar contra as máscaras, apenas constato que os sorrisos deixaram de habitar a cidade. Continuam escondidos em quarentena dentro das casas e dos ambientes seguros. A partir de agora, não se pode mais cumprimentar o porteiro ou uma pessoa na rua com um singelo sorriso e um aceno de cabeça. O aceno de cabeça ficou capenga, órfão de um elemento fundamental que é a expressão labial. Vamos ter que aprender a ler olhares, a atentar para as pequenas oscilações do canto dos olhos, das sobrancelhas, do nariz, da testa franzida. A percepção será outra, pois a boca se esconde.

Primeiro, o coronavírus roubou-nos o tempo e a liberdade. Agora, o coronavírus apaga os sorrisos de nossos rostos.


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Sons da quarentena




O céu cinza de um domingo de outono dá um tom melancólico, quase soturno, a mais este dia de quarentena. Uma garoa cai silenciosa e umedece a rua sem tráfego. O silêncio, da cidade adormecida pela pandemia e pela obrigação de ficar em casa, é quebrado pelo latido de alguns cães nas casas ao redor do prédio. Não se ouve o barulho dos carros, nem das motos dos entregadores de comida. O vento assobia de tempos em tempos pelas frestas da porta, batendo uma janela, balançando as folhas das árvores e agitando as flores rosáceas do ipê. Hoje, o final de tarde não será anunciado pela algazarra do bando de maritacas que surge em revoada antes do sol repousar.

 

Os sons da pauliceia mudaram com a pandemia. Há um clima de cidade pequena, de cidade do interior, onde os sons são mais naturais, mais ligados aos eventos da natureza. A chuva que cai no telhado, a batida oca de uma fruta que cai do pé e se acomoda no chão de terra batida, o portão da casa que bate ao ser fechado, o grito de quem chega e bate palma perguntado se há alguém na casa, crianças correndo na rua. A sonoridade da cidade pequena, da cidade acolhedora e familiar, é muito diferente da sinfonia pouco harmoniosa da cidade grande.

 

Outro dia, passava pela avenida Paulista, no meio de uma manhã de dia útil. O semáforo estava verde para os carros, mas não havia carros. Olhei e iniciei a travessia. Cheguei ao canteiro central e do outro lado também os carros estavam ausentes. A cidade marcha em câmara lenta, quase sem ruído, silenciosa, adormecida.

 

Continuei a caminhada até o escritório atentando para os sons. Nenhuma sirene, nenhum camelô anunciando seus produtos, nenhuma conversa de porta de bar, nenhuma pessoa varrendo a calçada, nenhum caminhão fazendo entregas. O silêncio imperava.

 

Deixei minha memória auditiva retornar para a infância, quando as brincadeiras na casa de minha avó eram interrompidas pela buzina do carrinho de sorvete, ou da música instrumental do realejo, da batida seca na tábua do vendedor de biju, do assobio longo do amolador de facas. Uma sinfonia urbana levada pelo tempo e que deixou saudades.

 

E a quarentena, seus sons deixarão saudades? Ou seria a ausência de sons que deixarão saudades? Será que sentimos saudades da sonoridade tão urbana da metrópole em pleno funcionamento?

 

Não me refiro à multiplicação de shows de música em canais de internet e na TV, nem na proliferação de lives, mas daqueles ruídos que quebram o silêncio e ativam nossa memória auditiva. Não me detenho sobre as músicas que tem a capacidade de nos transportar imediatamente para um lugar distante no passado, um momento preciso e exato na vida de cada um, na capacidade de arrepiar a pele ou de provocar olhos marejados.

 

Quero que repare nos sons ao seu redor. Quero convidá-lo, meu amigo leitor, a perceber a sonoridade que o cerca. Abra a janela de sua casa, feche os olhos e escute. Apenas escute. O que mudou nesta quarentena? Algo mudou. A trilha sonora da pauliceia mudou. Hoje, o dia termina silencioso e acinzentado e nem as maritacas saíram de seus abrigos para anunciar o fim do dia com a algazarra do bando. A minha quarentena deixará na memória a quase diária sinfonia dissonante das maritacas.  



domingo, 10 de maio de 2020

Dom de gerar




A mulher ocupa posição privilegiada na obra da criação divina. Somente ela compartilha do ato de criar, algo único e exclusivo, capaz de gerar uma vida, acalentar e cuidar do pequeno ser gestado. 

Criar não é fazer, nem construir. Criar é erguer - a partir de um quase nada - um novo ser humano, único, irrepetível, irreplicável, com todos seus talentos, qualidades, dons. Um ser aberto a amar, um ser eternamente grato pela mãe que o gerou. Se não fosse ela contribuir com a criação, a vida não se realizaria. Ser mãe é abrigar - para sempre - no coração o filho querido. Ser mãe é participar da construção do universo. Ser mãe é levar adiante uma tarefa confiada por Deus, a tarefa da criação.