segunda-feira, 23 de março de 2015

Conto: Corra, corra!




CONTO: Corra, corra!


Fazia questão de acordar cedo todos os dias, exceção feita aos sábados, domingos e feriados. Nos demais, levantava-se pouco antes do nascer do sol de modo a estar na rua e ter a face acariciada pelos primeiros raios solares. Gostava de contemplar a luminosidade matinal, como uma cortina que se abre e revela o cenário do palco, a cidade que despia sua roupa escura, cenário conhecido mas que ganhava tonalidades e cores inesperadas conforme a estação do ano,  a bruma matinal, a maresia, o cheiro. A corrida era uma necessidade, uma forma de espantar a preguiça do corpo e punir a carne com esforço e sacrifício, para ao final desfrutar de uma descarga benéfica de hormônios.

O silêncio da manhã, da cidade ainda adormecida, instigava-lhe a imaginar as vidas ao seu redor, as pessoas que cruzava – algumas habitualmente – em caminhadas ou corridas na orla da praia, faça chuva ou faça sol, sem intempérie a detê-los. Era uma disciplina quase fanática, quase militar, um exército de viciados em atividade física. Se ela fosse um robô agiria igual, pensou alongando os braços e pernas antes dos exercícios. Hoje dispensara a música. Optara pelo silêncio de seu universo próprio, como fazia todo dia 5 de cada mês.

A dor se misturava com a nostalgia, a melancolia com a saudade, a raiva com a compaixão. Nestes dias, era um cadinho de sentimentos em ebulição. Sensações que beiravam a dor física. Passaram-se seis anos desde aquele dia de novembro, mas tudo permanecia vivo e ela se odiava por isso. Deveria ter morrido o sentimento. Ele deveria ter  morrido. Não bastava fechar os olhos. O coração não tem olhos, pensou. Deixou-se abraçar pelo sol, deu dois saltos para sair do transe que lhe arrastava sem rumo e começou a correr.

Março trazia a instabilidade de um mês de transição. As manhãs não eram tão quentes, menos úmidas que nos meses anteriores. Fim de verão com as águas de março, mas hoje o dia resplandecia com toda sua majestade.  O vento era leve e lhe beijava o rosto com delicadeza. Seu cabelo preso num rabo de cavalo balançava num movimento pendular e ajudava a marcar o ritmo das passadas. Precisava se concentrar no começo, até que o ritmo lhe dominasse o organismo e tudo ficasse cadenciado numa máquina azeitada. Respiração, passada, braços, batimentos, olhar altivo. O cronômetro acionado para registrar tudo na planilha de treinos. A disciplina era rigorosa. Ela riu ao pensar em quantos lançamentos fizera nas planilhas de treino, quantos minutos correndo, quantos quilômetros correndo, quantos momentos da vida foram passados ali à beira-mar correndo, delirando com a paisagem da cidade sonolenta, lutando contra seu segredo, esforçando-se por esquecer o que nunca esqueceria. A corrida era uma tortura prazerosa que lhe permitia momentos de plena solidão, de pleno esforço e luta, de dominação do corpo pela mente e imaginava que isto algum dia, lhe permitiria esmigalhar por completo o sentimento guardado.

Uma bicicleta passou buzinando e ela se distraiu, atrapalhou-se no ritmo da passada, não a ponto de cair, mas revelando-se desengonçada. Achava-se pouco ágil, pesada demais para correr longas distâncias, mas percorria diuturnamente os oito quilômetros da beira-mar, quatro de ida e quatro de volta, concluindo o treino com uma refrescante água de coco. Ao menos, a corrida lhe dera mais resistência, pernas firmes, pele viçosa, colesterol baixo e um tornozelo que por vezes fazia questão de lembrar-lhe que os 40 anos já haviam sido superados. Ela ria de si mesma. Não corria para ficar gostosa. Corria para ter a sensação de que tinha condições de fugir, de escapar da realidade, como se a corrida lhe condicionasse e lhe preparasse para um momento de reencontro e então ela correria e correria e correria, sem olhar para trás, sem hesitar, sem temer o coração e com total racionalidade.

Ela tinha medo do reencontro. Tinha medo de emails, de presentes, de livros, de textos, de cartas, de recados, de bilhetes, de telefonemas, se bem que telefonemas eram coisa do passado. Achava mais arriscado encontrar um recado no whatsapp. Tudo se rompera em determinado momento. De uma única vez, como arrancar esparadrapo. Ele insistira. Ela calara. Um ano se passou e ele continuava a mandar sinais de fumaça, sem insistência, de forma delicada e carinhosa. Ela foi firme. Um dia ele desistiu, ou assim, achava ela. No fundo, desconfiara que em algum momento inesperado ele reapareceria e então ela teria que retomar sua fuga. Tinha que estar preparada e treinada. A corrida era a solução. Tinha que correr. Tinha que fugir. Tinha que estar alerta. Dispararia como um cometa, um cavalo chucro a correr numa planície qualquer.


E todo dia 5 a tensão atingia níveis extremos de ansiedade. Ele nunca mais aparecera, mas o que será que o destino guarda, ela pensou. Será que teria coragem de fugir? Será que seria forte o suficiente para fugir? Ou o coração me trairia novamente? As dúvidas açoitavam seus pensamentos com pontadas firmes, como se estivesse presa ao pelourinho recebendo chibatadas pelo seu mau comportamento. A ternura de seu olhar seria um bálsamo para o corpo cansado e teimoso. Por que fugir? Por que correr? Pare de pensar e corra. Corra. Corra!


sábado, 7 de março de 2015

Vinicius de Moraes : Senhor, Eu não sou digno






SENHOR, EU NÃO SOU DIGNO



Para que cantarei nas montanhas sem eco
As minhas louvações?
A tristeza de não poder atingir o infinito
Embargará de lágrimas a minha voz.
Para que entoarei o salmo harmonioso
Se tenho na alma um de-profundis?
Minha voz jamais será clara como a voz das crianças
Minha voz tem a inflexão dos brados de martírio
Minha voz enrouqueceu no desespero…
Para que cantarei
Se em vez de belos cânticos serenos
A solidão escutará gemidos?
Antes ir. Ir pelas montanhas sem eco
Pelas montanhas sem caminho
Onde a voz fraca não irá.
Antes ir – e abafar as louvações no peito
Ir vazio de cantos pela vida
Ir pelas montanhas sem eco e sem caminho, pelo silêncio
Como o silêncio que caminha…


(Vinicius de Moraes. As Coisas do Alto. São Paulo : Companhia das Letras, 1993, p. 37)