terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Conto: Menina de 34 anos - Parte 3


(c) Visão ao Longe


MENINA DE 34 ANOS - PARTE 3

Mariela não demorou a ganhar a confiança de Lico. Seus trabalhos eram primorosos, cuidadosos, esmerados e refletiam sua jovialidade. Quando havia alguma dúvida, algum termo que ela desconhecia, não hesitava em perguntar a Lico. Pela primeira vez em anos, ele percebera sua limitação: alguém o desafiava. Porém, ele reagira a este desafio com humildade, o que lhe surpreendeu. Os emails e as inúmeras conversas deixaram os padrões profissionais e ganharam a informalidade. A delicadeza feminina havia vencido uma barreira quase instransponível, atrás da qual Lico se escondia de si mesmo. Uma música, uma foto, um comentário casual no meio do dia, uma piada. Lico admirava a versatilidade de Mariela, a facilidade com que ela mudava de assunto e sempre tinha um comentário espirituoso, brincalhão. Ele deixou o sorriso aflorar. Ele passou a admirar a cidade. Ele passou a reparar mais nas pessoas ao seu redor; passou a se interessar de forma sincera por quem contribuía com o seu trabalho.


Aos poucos, ela foi revelando a Lico um outro lado da vida. O diferente deixou de ser abjeto e rejeitado, e passou a ser investigado, admirado. Mariela havia instigado um lado obscuro de Lico, que nem ele conhecia. A liberdade batia às portas de Lico, a libertação do velho Lico.

O tempo passou, como tudo na vida, e Lico deixara sua casca envelhecida ao longo do caminho. Era um homem renovado. Uma menina de 34 anos, como ele secretamente a chamava, havia despertado um ser humano adormecido, um bom homem, mas empedernido pela rotina cruel do trabalho feito de forma mecânica e sem amor.

Quando Mariela contou-lhe do esmalte laranja, Lico sorriu. Sorriu num agradecimento silencioso, ainda secreto, por aquela menina que havia conduzido-o pela mão numa trajetória paciente de renovação. Não torceu o nariz; não achou estranho ou arrojado. Viu no gesto dela o arrojo de um espírito vibrante e cheio de vigor, a sensibilidade estética de antecipar tendências, a beleza de uma mulher única, o avesso de tudo que imaginava desejar numa mulher.

O esmalte laranja. Era o ápice da transformação, da renovação do novo Lico. Ela não sabia, mas ele pressentia que ela já percebera o poder transformador que exercera sobre aquele jovem advogado. Lico estava feliz. Feliz e profundamente agradecido pelo acaso ter sido tão sido tão generoso com ele. E não por acaso, tudo isto se materializara às vésperas do Natal.



OBS: Esta é a parte final do conto. A Parte 1 e Parte 2 podem ser lidas nos links.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Feliz Natal

Desejo a todos os amigos, leitores, colegas e companheiros de jornada através deste blog, um Feliz Natal de muita paz, de muita alegria e de uma profunda renovação em nossos corações!

Que o menino Deus no presépio ilumine nossas mentes e abençoe nossas vidas!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Conto: Menina de 34 anos - Parte 2

MENINA DE 34 ANOS - Parte 2


Apesar do calor de fevereiro, Lico abotoara o paletó ao entrar no elevador e não dava a menor indicação de estava numa cidade com uma temperatura escaldante. Ele parecia saído de uma geladeira, todo arrumado, todo pomposo, todo formal. Não havia um fio de cabelo fora do lugar e disfarçava muito bem um certo temor que estranhamente lhe afligia antes que aquela porta se abrisse.


Mariela abriu a porta e saudou-o com profissionalismo. Era uma moça bonita, de pele morena dourada pelo sol, cabelos longos num tom castanho claro, quase loiros, olhos vivos que traziam consigo o brilho da juventude, uma jovialidade espontânea que fulminara Lico. Ele tropeçou nas palavras ao se apresentar, perdera um pouco da compustura, algo raríssimo, ainda mais diante de uma pessoa que ele julgava inferior intelectualmente.

Conversaram por quase uma hora. Mariela fez questão de dispensá-lo quando percebeu que o assunto principal já havia sido discutido e ao notar que Lico parecia incomodado diante dela. Ele estava incomodado. E muito. Subitamente, Lico se viu instigado por aquela mulher. O encontro havia catalisado em seu interior sentimentos adormecidos, ideias enterradas, uma juventude perdida, um tempo que passou e que pensava irremediavelmente enterrado. Algo borbulhava dentro dele como um vulcão prestes a erupcionar, suas ideias pareciam reviradas do avesso, seus conceitos haviam sido postos em xeque com apenas um olhar, algumas palavras e um sorriso.

Lico ignorou o calor e resolveu caminhar de volta para o hotel. Tirou o paletó e carregou-o dobrado no braço, alheio aos riscos das ruas cariocas, algo inusitado para aquele homem. Ele estava em transe, arrebatado por uma visão de vida para a qual ele estava cegado. Mariela havia, sem perceber, causado um terremoto na vida de Lico, fazendo desmoronar uma muralha que o distanciava da realidade e dos anos que se passavam sem que ele vivesse. Bastara uma hora de conversa com a carismática moça para Lico perceber que a palpitação que sentira no coração não era o início de um problema cardíaco, mas seiva da vida a pulsar dentro dele. Era uma epifania!

 
A Parte 1 pode ser lida aqui.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Cores de Verão


Cores de Verão, Élia Laranja

Início do verão. O sol brindou-nos por aqui com uma explosão de cores. O céu azul; as árvores com um verde vivo; a decoração de Natal reluzindo o brilho luminoso em tons de dourado, prateado e vermelho. Nesta profusão de cores, um espetáculo gratuito, o rosto da pessoas reflete a estação do ano, de muita luz, de muito calor, de intensidade.

A moda traduz bem esta explosão. Nada de tons apagados ou cores discretas; tudo é vivo, tudo é cor.

Cada dia uma  cor, em vários matizes e tons, mas sempre uma cor. Do arco-íris para a arquitetura; do céu para os olhos da pequena criança a brincar com final das aulas e ansiosa pela chegada das festas; do astro rei para o teu sorriso a iluminar meus passos e devaneios.

O verão chegou com seu festival de cores.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Conto: Menina de 34 anos - Parte 1


(c) visão ao longe



MENINA DE 34 ANOS

Foi numa conversa corriqueira durante uma tarde comum, no meio do expediente, sem motivo algum, sem introdução, em que casualmente ela escreveu: “pintei as unhas com esmalte laranja!”


Licurgo havia se acostumado a conversar com ela com frequência pelos comunicadores instantâneos, algo que ele considerava uma das grandes maravilhas modernas, principalmente por ajudá-lo a vencer a timidez e a aproximar pessoas distantes fisicamente. Passava horas ligado e mantinha-se online sempre que podia – e o trabalho permitia. Naquela tarde, estava tranquilo. Leu a mensagem dela e sorriu. Respondeu alguma coisa elogiosa. Dificilmente ele era crítico com Mariela.

Aquela frase, surgida do nada em sua tela do computador, era um indicativo de uma longa e lenta jornada, que agora ele se dava conta com mais clareza e lucidez. Talvez fosse esta proximidade das festas de final de ano que haviam deixado seu espírito mais aberto e propenso a perceber sutilezas dos gestos humanos.

Este algo surgiu inesperadamente quando Mariela foi indicada para atuar como tradutora de francês dos documentos jurídicos do escritório. Licurgo era um advogado que trabalhava com clientes franceses num enorme escritório da Av. Faria Lima, em São Paulo. Foi o Dr. Vergueiro, um dos sócios mais antigos e que já se aposentara, que havia recomendado os serviços de Mariela. Conhecia o pai dela, diretor de uma multinacional francesa, e disse que a moça era formada em letras e falava francês fluentemente. O Dr. Vergueiro frisou a formação e histórico da tradutora pois sabia que Licurgo, mesmo jovem, colocaria uma série de empecilhos e obstáculos até ganhar confiança nela.

Licurgo era detalhista, beirava a chatice no trato com os funcionários, implicante com atrasos e demoras, intolerante com erros ingênuos e descuidos profissionais. Os estagiários temiam trabalhar com ele. Trazia consigo uma arrogância típica de alguém que com pouco menos de 35 anos estava prestes a virar sócio. Era um velho travestido de jovem advogado. Ou talvez, um jovem advogado envelhecido pela dedicação integral, cobrança e sistema escravocrata imposto aos associados dos grandes escritórios de advocacia brasileiros.

Licurgo era um velho interior. Cultivava uma solidão pernóstica. Não tinha tempo para amigos, apenas para o trabalho que lhe consumia o dia, a noite e a vida. Certa vez um amigo lhe perguntou de que valia uma bela conta bancária, um belo carro do ano, se ele não vivia? A pergunta, lançada numa mesa de bar, numa das raras vezes em que fora tomar uma cerveja com amigos, causou-lhe uma crise existencial.

- Acorda para a vida, Lico! – cutucou um amigo naquela ocasião.

Ele não dormiu naquela noite. Passou a maior parte do tempo olhando a cidade adormecida pela janela, ouvindo, pacientemente os poucos ruídos que a alta madrugada lhe presenteava.

No dia seguinte, o Dr. Vergueiro entrou na sala de Lico e falou-lhe de Mariela. Determinou que ele deveria marcar uma reunião com ela na sua próxima ida ao Rio de Janeiro. Ele quase engasgou. Carioca falando francês não deve ser coisa boa, ele pensou, mas como a ordem vinha do chefe, ele aquiesceu. Pegou os dados de Mariela com a secretária de Vergueiro e mandou-lhe um email com todo formalismo de um primeiro contato. A resposta foi rápida e a reunião marcada para a semana seguinte, na casa dela, no final do dia.


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Epígrafe - II

"Veja o dia de hoje,
Pois o de ontem é apenas sonho
E o de amnhã, apenas uma visão.
Mas o hoje bem vivido
Torna todo o ontem um sonho de felicidade
E todo o amanhã uma visão de esperança.
Por isso, concentre-se no dia de hoje."

Provérbio Sânscrito

(Stephen R. Covey. A Grandeza de Cada Dia. Rio de Janeiro : Sextante, 2008, p. 222).

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Crônica: O Barco




O BARCO

Sou um barco velho que repousa nas águas mansas de uma baía, atracado no píer. Meu casco de madeira traz as cicatrizes de praias rasas, de pedras pelo caminho, de abalroamentos com cais e atracadouros. Cicatrizes desenhadas e que formam símbolos indecifráveis para um desconhecido, mas que conheço cada detalhe de sua estória e de seu nascimento. Algumas foram remendadas; outras perduram e remanescem como uma lembrança de lutas e derrotas.


Sou um barco velho e cansado. Naveguei por águas turvas, por águas inquietas, por águas remansosas. Naveguei em dias de céu claro, de sol forte, ao longo de margens límpidas e repletas de folhagens verdes. Naveguei na escuridão da noite, guiado pelo luar e pelas estrelas que pontilham a abóbada celeste. Naveguei em dias de chuva, de tormentas, de ventos cortantes como uma navalha e com frio polar. Naveguei sem rumo, apenas para acompanhar aquele que me guiava no leme com mão firme. Naveguei ao bel prazer da correnteza, deixado-me levar. Naveguei em alto mar, em longas jornadas para recônditos desconhecidos e inexplorados. Naveguei em busca de algo que não imaginava, mas que se concretizou por fruto do acaso. Naveguei incansavelmente, dias e noites, esperando avistar terra, um farol, uma luz. Naveguei no silêncio e no barulho das ondas. Naveguei para te encontrar.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Dicas da Dani: Ingrid Michaelson

Ingrid Michaelson nasceu em 1979. É cantora e compositora, além de tocar violão e piano. Faz um som indie-pop e tem músicas nas trilhas sonoras de Grey's Anatomy e One Tree Hill.

Com suas músicas sendo tocadas em séries de sucesso (Grey’s Anatomy/One Three Hill), Ingrid ganhou reconhecimento e o single The Way I Am se tornou hit na internet.

No verão de 2008 no hemisfério norte, abriu a turnê europeia do cantor Jason Mraz.

Ingrid recentemente gravou um dueto com a cantora Sara Bareilles chamado ‘Winter Song’, gravado no ‘The Hotel Café Presents Winter Songs’. Elas apresentaram a música no The Tonight Show with Jay Leno em 9 de Decembro de 2008. A canção também fez parte da quinta temporarada de “Grey’s Anatomy“‘s e do penúltimo episódio da série Scrubs.

Se você gosta de Sara Bareilles, vai ouvir falar de Ingrid Michaelson. Maybe já está no playlist de rádios brasileiras e dá a trilha sonora a este post.




MAYBE

Written by Ingrid Michaelson


I don't want to be the one to say goodbye
But I will, I will, I will
I don't want to sit on the pavement while you fly
But I will, I will, oh yes I will

Maybe in the future, you're gonna come back, you're gonna come back around
Maybe in the future, you're gonna come back, you're gonna come back
The only way to really know is to really let it go
Maybe you're gonna come back, you're gonna come back, you're gonna come back to me

I don't want to be the first to let it go
But I know, I know, I know
If you have the last hands that I want to hold
Then I know I've got to let them go

Maybe in the future, you're gonna come back, you're gonna come back around
Maybe in the future, you're gonna come back, you're gonna come back
The only way to really know is to really let it go
Maybe you're gonna come back, you're gonna come back, you're gonna come back

I still feel you on the right side of the bed
And I still feel you in the blankets pulled over my head
But I'm gonna wash away, oh I'm gonna wash away everything til you come home to me

Maybe in the future, you're gonna come back, you're gonna come back
In the future, you're gonna come back, you're gonna come back

Maybe in the future, you're gonna come back, you're gonna come back around
Maybe in the future, you're gonna come back, you're gonna come back
The only way to really know is to really let it go

Maybe you're gonna come back, you're gonna come back, you're gonna come back to me
You're gonna come back to me
You're gonna come back to me

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Sonoridade



"O 'o', que ela pronunciava surpreendentemente como um 'u', a sonoridade clara, estranhamente abafada do ê e o macio chiado no final soaram-lhe como uma melodia que, para ele, perdurou mais tempo do que na realidade, uma melodia que ele simplesmente adoraria ter escutado durante todo o resto do dia."
(Pascal Mercier. O Trem Noturno para Lisboa. 3a. ed. Rio de Janeiro : Record, 2009, p.15)

Feche os olhos e escute. A sonoridade da voz, com seu timbre próprio, com a entonação peculiar, com um sotaque. Nos tempos em que o telefone não denunciava quem estava do outro lado da linha, éramos tomados de alegria ao ouvir do outro lado da linha uma voz conhecida. A alegria ressoava e era denunciada pela entonação. O rádio ainda nos convida a fazer este exercício auditivo, a imaginar a pessoa que é titular daquela voz.

A sonoridade da voz é o ponto de partida, a faísca, que altera o ritmo do batimento cardíaco, que arrepia, que nos emociona. A música, como trilha sonora de um filme, ou de um momento especial, marcam de forma indelével a memória do filme da vida de cada um.

Prendi-me a este trecho inicial de O Trem Noturno para Lisboa que ecoou ao longo de minha leitura. Este post estava em fase de gestação, até que ontem, ao ler a notícia da morte do Lombardi, o famoso locutor dos programas do Silvio Santos que nunca mostrava o rosto. Sua identidade era a voz. Assim como Cid Moreira, Jânio Quadros, Paulo Maluf e tantos outros que nos marcaram pela sua voz.

A voz, como na obra de Pascal Mercier, pode romper barreiras e derrubar muros. Certa vez um amigo narrava-me que havia deixado de odiar o jeito de falar dos cariocas. Surpreso com esta revelação, pois era um bairrista convicto, perguntei-lhe o que havia acontecido. Ele, com um brilho nos olhos, dissera-me que uma carioca da gema havia encantado-o com sua voz. Ouvira a voz, antes de contemplar seus olhos, e aquela voz o arrebatara de forma a mudar radicalmente sua visão do sotaque carioca.

Uma voz, uma música, um som. Uma palavra dita com ternura e carinho. Um conselho sussurrado em segredo. A audição nos presenteia com todos estes mimos. A voz amiga mata a saudade e impulsiona a novos sonhos e voos. A sonoridade nos lembra constantemente que não estamos sós.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Epígrafe - I

A felicidade e a desventura têm isto de comum: pedem companhia. A primeira, para se multiplicar; a segunda, para se dividir.


A saudade, não: a saudade é solitária. Pede recolhimento e silêncio. E é grave, é austera. Reclama um canto, como a esconder-se, e deixa os olhos molhados, como estão os meus agora, com o pensamento na família, nos amigos, nos companheiros, diante da luz escancarada defronte de minha janela sobre o mar.”

(Josué Montello. Diário do Entardecer. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1991, p. 173)