Logo no início de A Trégua, Santomé descreve seu trabalho no seu diário:
"O que eu menos odeio é a parte mecânica, rotineira, do meu trabalho: repassar um lançamento que já redigi milhares de vezes, efetuar um balanço de saldos e constatar que tudo está em ordem, que não há diferenças a buscar. Esse tipo de tarefa não me cansa, porque me permite pensar em outras coisas e até (por que não dizer a mim mesmo?) também sonhar. É como se eu me dividisse em dois entes díspares, contraditórios, independentes, um que sabe de cor seu trabalho, que domina ao máximo as variantes e os meandros dele, que está sempre seguro de onde pisa, e outro sonhador e febril, frustradamente apaixonado, um sujeito triste que, no entanto, teve, tem e terá vocação para a alegria, um distraído a quem não importa por onde corre a pena nem que coisas escreve a tinta azul que em oito meses ficará negra.
Em meu trabalho, o insuportável não é a rotina; é o problema novo, o pedido repentino dessa Diretoria fantasmal que se esconde por trás de atas, disposições e gratificações de final de ano, a urgência com que se reclama um informe ou um balancete analítico ou uma previsão de recursos. Então, sim, como se trata de algo mais do que rotina, minhas duas metades devem trabalhar para a mesma coisa, eu já não posso pensar no que quiser, e a fadiga se instala nas minhas costas e na nuca, como um emplastro poroso. Que me importa o lucro provável do item Pernos de Pistão no segundo semestre do penúltimo exercício? Que me importa o modo mais prático de conseguir a redução das Despesas Gerais?
Hoje foi um dia feliz; só rotina." (p. 8-9)
Santomé é contador de uma firma. A rotina lhe alegra pois permite "fugir" do trabalho, permite que ele se encontre em devaneios no meio do dia. O trabalho rotineiro é feito de forma automática, quase como robôs.
A visão do trabalho abraçada por Santomé parece-nos um tanto rasteira, sem sentido, rasa. Não creio que o trabalho humano, braçal ou intelectual, seja um jugo pesado sem sentido. Acredito que o trabalho permite ao ser humano criar, transformar e contribuir para um mundo melhor. Há rotina no trabalho? Claro que há. Mas a rotina ensina-nos a ser perseverantes, a enfrentar aqueles momentos chatos e maçantes, superando-se a sim mesmo.
Já diziam nossos avós: o trabalho enobrece o homem. O trabalho deve ser um momento de crescimento, e digo isto do ponto de vista interior, espiritual. Muitas vezes chegar ao final do dia e sorrir depois de uma longa jornada, é um exercício custoso de esquecimento próprio. Muitas vezes não se irritar quando invadem nossa sala de trabalho para reclamar ou discutir algum problema é um exercício de auto-controle. As mudanças repentinas de planos e agendas forçam-nos a ser mais flexíveis e maleáveis, novamente esquecendo-nos de nós mesmos.
Realizar o trabalho diário com alegria e paixão é difícil, mas nos torna pessoas melhores. Santomé não percebeu isto e para ele a jornada de trabalho era rasa, escura, sem cor.
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