PASSAGEM DO ANO
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repelto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
de lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
(A Rosa do Povo. 7a. ed. Rio de Janeiro : Record, 1991, p. 39-40)
A vida é gorda e recebeste com simplicidade este presente do acaso. Palavras do poeta que permitem um rearranjo, uma reorganização, como peças cambiantes que não tiram o sentido da mensagem poética, mas acrescentam a genialidade de Drummond no domínio da língua.
A vida escorre da boca. Alguns poderiam dizer que a vida escapa, é finita, que a cada segundo que se passa, a morte está mais próxima. Porém, o poeta parece nos convidar a sorver cada momento da vida e lambuzarmo-nos com este presente do acaso.