“Os primeiros bondes começavam a cruzar a cidade, e o tilintar da campainha de um deles, abafado pela casa fechada, chegou até mim como naquele verão dos meus sete anos, quando da minha última visita aos meus avós. Imediatamente tive uma percepção nebulosa, mas vívida e fresca como o cheiro da fruta apanhada do pé, do que era Barcelona na minha lembrança: esse barulho dos primeiros bondes, quando a tia Angustias passava rente à minha caminha improvisada para fechar as persianas que já deixavam entrar muita luz. Ou de noite, quando o calor não me deixava dormir e a trepidação subia a ladeira da rua Aribau, enquanto a brisa trazia o cheiro dos plátanos, que abriam seus galhos verdes e poeirentos sob a sacada aberta. Barcelona era também umas calçadas largas molhadas de chuva, e muita gente bebendo refrescos num café... Tudo o mais, as grandes lojas iluminadas, os automóveis, a agitação e até o próprio passeio da estação no dia anterior, que eu já acrescentara à minha ideia da cidade, era pálido e falso, artificialmente construído, como as coisas que, de tão trabalhadas e manuseadas, perdem seu frescor original.”
(Nada, de Carmen Laforet. Rio de Janeiro : Objetiva, 2008, p. 23)
Os bondes não circulam mais por Barcelona, mas as calçadas permanecem largas e impecáveis, os cafés continuam lotados no verão e os plátanos revelam toda sua formosura com a bela folhagem verde.
Fui até a Carrer D´Aribau, uma rua paralela das Ramblas e da Passeig de Gràcia. Esta última, uma rua movimentada, ampla, charmosa e com lojas de todas as grifes internacionais de luxo. Tinha ido à uma loja da Editora Marcial Pons, editora jurídica espanhola, que fica próxima à Passeig de Gràcia. Depois das compras, fui em sentido contrário à estação de metrô, esticando a caminhada na tarde quente até o cenário de Nada.
O livro foi escrito em 1944 e o tempo não tirou o charme da rua, dos prédios baixos, das sacadas que se debruçam sobre a rua. Viajar no tempo foi fácil. O cenário literário materializava-se diante dos meus olhos. Andrea, a protagonista, parecia ter passado a pouco por aquela rua. As palavras saltaram do objeto inerte chamado livro e ganharam uma nova dimensão, real, viva, vibrante. Como é gostoso visitar o cenário de um livro e notar a genialidade do escritor! E este primeiro encontro é permeado pelo frescor original que a personagem diluiu na sua rotina.