segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Conto: Menina de 34 anos - Parte 1


(c) visão ao longe



MENINA DE 34 ANOS

Foi numa conversa corriqueira durante uma tarde comum, no meio do expediente, sem motivo algum, sem introdução, em que casualmente ela escreveu: “pintei as unhas com esmalte laranja!”


Licurgo havia se acostumado a conversar com ela com frequência pelos comunicadores instantâneos, algo que ele considerava uma das grandes maravilhas modernas, principalmente por ajudá-lo a vencer a timidez e a aproximar pessoas distantes fisicamente. Passava horas ligado e mantinha-se online sempre que podia – e o trabalho permitia. Naquela tarde, estava tranquilo. Leu a mensagem dela e sorriu. Respondeu alguma coisa elogiosa. Dificilmente ele era crítico com Mariela.

Aquela frase, surgida do nada em sua tela do computador, era um indicativo de uma longa e lenta jornada, que agora ele se dava conta com mais clareza e lucidez. Talvez fosse esta proximidade das festas de final de ano que haviam deixado seu espírito mais aberto e propenso a perceber sutilezas dos gestos humanos.

Este algo surgiu inesperadamente quando Mariela foi indicada para atuar como tradutora de francês dos documentos jurídicos do escritório. Licurgo era um advogado que trabalhava com clientes franceses num enorme escritório da Av. Faria Lima, em São Paulo. Foi o Dr. Vergueiro, um dos sócios mais antigos e que já se aposentara, que havia recomendado os serviços de Mariela. Conhecia o pai dela, diretor de uma multinacional francesa, e disse que a moça era formada em letras e falava francês fluentemente. O Dr. Vergueiro frisou a formação e histórico da tradutora pois sabia que Licurgo, mesmo jovem, colocaria uma série de empecilhos e obstáculos até ganhar confiança nela.

Licurgo era detalhista, beirava a chatice no trato com os funcionários, implicante com atrasos e demoras, intolerante com erros ingênuos e descuidos profissionais. Os estagiários temiam trabalhar com ele. Trazia consigo uma arrogância típica de alguém que com pouco menos de 35 anos estava prestes a virar sócio. Era um velho travestido de jovem advogado. Ou talvez, um jovem advogado envelhecido pela dedicação integral, cobrança e sistema escravocrata imposto aos associados dos grandes escritórios de advocacia brasileiros.

Licurgo era um velho interior. Cultivava uma solidão pernóstica. Não tinha tempo para amigos, apenas para o trabalho que lhe consumia o dia, a noite e a vida. Certa vez um amigo lhe perguntou de que valia uma bela conta bancária, um belo carro do ano, se ele não vivia? A pergunta, lançada numa mesa de bar, numa das raras vezes em que fora tomar uma cerveja com amigos, causou-lhe uma crise existencial.

- Acorda para a vida, Lico! – cutucou um amigo naquela ocasião.

Ele não dormiu naquela noite. Passou a maior parte do tempo olhando a cidade adormecida pela janela, ouvindo, pacientemente os poucos ruídos que a alta madrugada lhe presenteava.

No dia seguinte, o Dr. Vergueiro entrou na sala de Lico e falou-lhe de Mariela. Determinou que ele deveria marcar uma reunião com ela na sua próxima ida ao Rio de Janeiro. Ele quase engasgou. Carioca falando francês não deve ser coisa boa, ele pensou, mas como a ordem vinha do chefe, ele aquiesceu. Pegou os dados de Mariela com a secretária de Vergueiro e mandou-lhe um email com todo formalismo de um primeiro contato. A resposta foi rápida e a reunião marcada para a semana seguinte, na casa dela, no final do dia.


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