
Uma leitura que fará pensar.
BECO DE LISBOA
O sopro leve do instrumento
Toque delicado
Triste acordeon.
Precisão de som
Que brota do violão.
Voz sedutora e sublime
Sotaque lisboeta
Gutural, mas doce.
Tua voz feminina acompanha-me
Inspira-me
Alegra-me
Ou traz a melancolia?
Ambiguidade e indecisão
Arrependimento e desejo.
O homem é um ser paradoxal,
E neste paradoxo cria
Transforma
Destrói
Constrói
E ama.
RLBF – junho 1997
"De cabeça baixa, ele afaga os cabelos adormecidos da filha em seu colo. Então vê um tremor nas pálpebras delicadas, uma estreita fissura naquela invejável inconsciência, e assiste, silencioso, à evolução do seu despertar. Os olhos da menina ficam semicerrados por alguns momentos. Ela intui o carinho do pai e se mexe, acomodando-se melhor. Entreabre os olhos pela primeira vez, fechando-os rapidamente. Em seguida, um longo bocejo faz avançar a realidade, uma piscada tripla focaliza tudo um pouco mais e, por fim, as mãos pequenas e macias espremem do rosto os vestígios do sono. Ela abre os olhos aquecidos, enxergando bem de perto o pai, que a olha de volta, fazendo um grande esforço para sorrir com doçura. (...)"
(Outra Vida, Rodrigo Lacerda, Rio de Janeiro : Objetiva, 2009, p. 71)
Contemplar o sono pueril, seja no colo do pai ou no leito, é um ato de paternidade que só se compreende quando se é pai. Um trecho para comemorar o dia que se aproxima neste domingo.
Ela estranhou quando ele pediu para ir novamente ao trabalho com ela ao invés de ficar brincando e aproveitando as férias. Mas as crianças são curiosas, muito curiosas. A companhia da mãe era o melhor programa para ele naquele dia de férias. Queria tê-la por perto, à sua vista, para a qualquer momento poder contemplar o belo rosto materno, compenetrado com o trabalho, o olhar fixo na tela do computador ou anotando algo numa agenda. Os olhinhos do pequeno observam tudo, captam tudo, até aqueles detalhes que já passam despercebidos pela mãe. A aflição natural que havia tomado conta dela quando ele insistiu em acompanhá-la foi substituída por um sentimento de ternura que se estendeu por toda aquela tarde. Sem dizer nada, sentiu-se orgulhosa do filho, do comportamento dele, um mocinho já. O ápice foi a companhia dele, um gesto de carinho filial , silencioso, mas que a fez sentir-se querida. Coisa de criança que sabe cativar e nutrir o coração materno.
* * * * *
Sábado a tarde e ela queria que o pai a ensinasse a andar de bicicleta. Não queria a mãe, queria só o pai. Coisa de criança que não quer magoar, apenas escolhe aquele que lhe dá mais segurança, mais tranqüilidade. O pai era a serenidade em pessoa. Calmo, paciente, tinha a palavra certa na ponta da língua, compreendia as perguntas da filha e sabia o que responder. Ela vivia querendo que ele adivinhasse o que ela estava pensando, e ele sempre acertava. Tinham uma conexão telepática. A voz firme e tranquila deu à menina a segurança que ela almejava. Não caiu nenhuma vez. Não ralou o joelho. Não sofreu nenhum traumatismo craniano e nem precisou do capacete. Em pouco menos de trinta minutos, dava suas pedaladas sem rodinhas, num ziguezague titubeante, mas feliz com a conquista: estava andando de bicicleta sem rodinhas! A mãe ficou enciumada, mas a menina soube contornar o ciúme e acalmar os ânimos aflitos da mãe que assistia a cena. A menina estava saltitante e quis repetir a dose no domingo. Mas sem a mãe.