terça-feira, 17 de novembro de 2020

Conto: O bilhete

 


O bilhete

Gosto da sua letra, do jeito que deitas o traço firme sobre o papel imaculado, desenhando letras e mais letras de forma decidida, com os olhos de jaboticaba fixados na ponta da caneta que desliza sobre a superfície. O texto ganha forma, corpo e apenas te observo enquanto escreves. Caprichas na forma como cortas a letra t. Os is trazem um pingo certeiro. A escrita flui como se a pergunta formulada na prova já tivesse sido pensada e respondida mentalmente antes de iniciares o texto. Sento-me sobre a mesa do professor para poder contemplar a letra que mais se parece com uma pintura. Talvez seja uma grande besteira este meu devaneio banal. Quem se encanta com uma letra? Não sou professor de caligrafia e nem professor de português, muito menos calígrafo, mas como é bom receber uma prova onde não é preciso decifrar garranchos e hieróglifos. Deveriam incluir um curso de arqueologia egípcia na formação do professor para que pudéssemos ler as provas de alguns alunos. Bem, estou eu divagando novamente. Quanta besteira, professor! Ninguém mais vai fazer prova escrita a mão. Em breve, tudo será digitado e as belas letras caprichadas se perderão, cairão num buraco negro, no esquecimento eterno. Ah, mas como eu gosto de admirar a tua letra em bilhetes que guardo com enorme carinho.


Remexer gavetas é uma atividade de risco, ainda que pareça algo tedioso e despido de periculosidade. Há sempre o perigo de ressuscitar memórias adormecidas, inertes em algum recanto da mente - ou de um baú. Basta encontrar algo para que aquele artefato solte algum gás tóxico que estava congelado no objeto e desperte e provoque as mais diversas sensações, sorrisos, lágrimas, raiva. Uma carta. Uma foto. Uma receita gastronômica. Uma música. Um perfume. Um ingresso de cinema. Um bilhete.


O bilhete ainda trazia o clip de metal preso na parte superior, mas se separara do papel onde estava preso originalmente. O recado desprendera-se do trabalho de conclusão de curso de Joana, que analisou o projeto do Edifício Guaimbê, de Paulo Mendes da Rocha e sua influência na arquitetura residencial paulista. Lembro-me que fui tomado de grande surpresa quando a morena, um tanto debochada e que parecia entediada nas minhas aulas de História da Arquitetura Brasileira, escondida por detrás dos longos cabelos castanhos escuros e que deixava cair sobre o lado esquerdo do rosto, um toque de charme - ou talvez uma timidez disfarçada. Nunca soube ou certo. Lecionava no início do 3o. ano, 5o. semestre e muitos tinham minha disciplina como algo inútil, mera perfumaria para preencher a grade curricular. Aqueles que se dedicavam a minha disciplina e compreendiam a importância da história para a arquitetura, despontavam, mais adiante, como profundos observadores da realidade urbana brasileira. Posso me orgulhar de alguns alunos que orientei, sem dúvida, mas quando Joana me abordou no final do terceiro ano, na minha sala acanhada perto da biblioteca da faculdade, tive a nítida impressão de que ela havia me confundido com outro professor.  Algo que não seria estranho, pois sou um tipo comum, sem as excentricidades dos grandes professores de arquitetura. 


A proposta de trabalho de conclusão de curso tinha consistência e o tema estava circunscrito à minha área de pesquisa. Ela se mostrou mais preparada do que imaginava. Tentei puxar pela memória as notas dela na minha disciplina, mas não era nada que me despertasse um traço natural de genialidade. Era, assim como eu, uma aluna comum. Pareceu-me esforçada e teceu-me elogios que me fizeram ruborizar. Olhei-a com um olhar diferente a partir daquela primeira conversa. 


Ela se empolgou com o tema. Fizemos vários encontros na faculdade, alguns coletivos, outros individuais e aqueles olhos de jaboticaba despertavam um encanto que achava esquecido, perdido no tempo em algum lugar do passado. Paixões platônicas são verdadeiros narcóticos, entorpecem o ser, pintam a realidade de tons pastéis, estampam um sorriso quase permanente no rosto do viciado. Com tantos anos de vida acadêmica, não era a primeira vez que era acometido por esta síndrome platônica. Nas outras vezes, o silêncio não havia sido quebrado e o segredo restou guardado em alguns cadernos que usava como diários. Desta vez, porém, resolvi deixar florescer minha atração. Esperei a banca e o resultado. Fora aprovada e meus colegas desfiaram longos elogios à jovem arquiteta, agora recém formada. Enchi-me de orgulho e satisfação.


Alguns dias depois, convidei-a para jantar com a justificativa de comemorarmos o êxito do trabalho. Ao final de um agradável encontro, declarei-me. Ela ficou incomodada. A reação dela me deixou desgostoso. Pensei se minhas palavras poderiam caracterizar alguma forma de assédio, de pressão indevida. Um calafrio percorreu minha espinha e fui tomado de um sentimento de pânico. Minha carreira, meu prestígio, meus longos anos na academia. Tudo passou pela minha cabeça enquanto ela simplesmente passava o dedo pela borda do guardanapo de pano e tentava desfiar algumas palavras para trazer-me de volta a realidade. Um choque de realidade, sim, era isso que recebi naquele final de refeição. Envergonhado, as palavras me faltaram. Ela agradeceu o jantar, levantou-se e pediu um Uber. Não seria eu a levá-la de volta para casa. Não seria eu a provar o gosto daqueles lábios. Não seria eu a modificar o entorpecente em realidade viva. 


Daqueles dois anos de convivência mais intensa, além de meus delírios e devaneios, restou apenas o bilhete que ela escrevera e prendera no trabalho final do curso.




quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Conto: Entre corpos

 



ENTRE CORPOS


O ônibus não estava lotado naquela manhã, igual a todas as outras. Passageiros se alinhavam de forma assimétrica diante de mim, ao percorrer com os olhos a massa humana, fui arrebatado por algo inusitado. Entre braços e corpos, formava-se um espaço onde podia avistar um pescoço longilíneo, delicado, que desaparecia numa cortina de cabelos loiros. Lembrei-me de Rodin e de seus estudos das partes do corpo. Aquele pescoço seria um modelo perfeito para uma escultura do mestre francês. Como abelha atraída por uma bela flor repleta de pólen, vi-me abobalhado a admirar aquela obra de arte em forma humana. Confesso que alguns pensamentos mais sensuais me cruzaram a mente, mas aquele não era o lugar para ter estas vibrações. Era sensual, sim, não havia dúvida, mas desde quando um pescoço se tornara algo sensual para mim? Achei divertida aquela reflexão sem tirar os olhos do pescoço da bela moça.

 

A gola branca, de blusa discreta, realçava a pele amorenada que não escondia algumas pintas e uma pequena marca de nascença em forma de meia lua, bem clara, quase imperceptível. Meu olhar aguçado não poderia deixar desenhar estrelas naquelas pintas que dançavam ao redor da lua. Dois colares com correntes finas e douradas acariciavam o entorno do pescoço e repousavam sobre o colo. Alguns fios de cabelo escondiam o que seria um alvo predileto de um vampiro, que se refestelaria com uma larga mordida, a transformar a bela moça em sua seguidora noturna. Seria eu um vampiro que agora despertava diante daquele pescoço que me atraía de forma estranha e inexplicável? Teria eu algum sangue de antepassado vindo da Transilvânia ou aparentado do Conde Drácula? Ou seria algum personagem daquela série de livros de adolescentes vampiros Crepúsculo? Quase ri alto com tanta besteira a rondar minha mente com pensamentos desconexos.

 

Mas afinal, entre aqueles braços e corpos, só conseguia avistar o pescoço, um pedaço da orelha que não estava coberta pelos fios loiros e uma leve curvatura do maxilar a iniciar o desenho da face. Ela parecia hipnotizada pelo celular, totalmente alheia à minha presença e meu olhar fixo. Meu interesse passava despercebido. Quando chegou minha hora de descer do ônibus, lancei um olhar acrescido de um sorriso terno, mas ela me ignorou. Quem sabe amanhã, tomaria o mesmo ônibus. Quem sabe amanhã, poderia perguntar seu nome. Quem sabe amanhã, ela me olharia nos olhos.


segunda-feira, 29 de junho de 2020

Apagaram os sorrisos






Veio a pandemia e decretaram uma longa quarentena. Era para ser por quinze dias, depois mais quinze, viraram 60, adicionaram mais um mês e o pico parecia inalcançável. Até hoje acho que ainda não chegamos lá, mas resolveram que já era hora de permitir um afrouxamento, um lento despertar da cidade adormecida.

O período de hibernação dos ursos deve ser assim, salta-se do carnaval para as férias de julho, sem Páscoa e sem festa junina, e adicione alguns feriados que foram devorados pelo vírus por decisões políticas. Transitar por São Paulo, após escurecer, é como caminhar por uma cidade semideserta, quase fantasma, com ar soturno, tristonho. O trânsito evaporou, não há carros, não há pessoas, não há ruídos. O silêncio impera e traz à memória uma cidade de interior, pacata, tranquila, silenciosa.

Aos poucos, há uma reabertura. Pessoas voltam a circular pelas ruas ao longo do dia, mas há algo de diferente. Apagaram os sorrisos. Olhe para a foto de um rosto e cubra a parte abaixo do nariz e o queixo. É praticamente impossível dizer se a pessoa está sorrindo, se a pessoa está triste, se a pessoa está nervosa. Perde-se a expressão quando escondem a nossa boca por detrás de uma máscara.

Não estou aqui a me revoltar contra as máscaras, apenas constato que os sorrisos deixaram de habitar a cidade. Continuam escondidos em quarentena dentro das casas e dos ambientes seguros. A partir de agora, não se pode mais cumprimentar o porteiro ou uma pessoa na rua com um singelo sorriso e um aceno de cabeça. O aceno de cabeça ficou capenga, órfão de um elemento fundamental que é a expressão labial. Vamos ter que aprender a ler olhares, a atentar para as pequenas oscilações do canto dos olhos, das sobrancelhas, do nariz, da testa franzida. A percepção será outra, pois a boca se esconde.

Primeiro, o coronavírus roubou-nos o tempo e a liberdade. Agora, o coronavírus apaga os sorrisos de nossos rostos.


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Sons da quarentena




O céu cinza de um domingo de outono dá um tom melancólico, quase soturno, a mais este dia de quarentena. Uma garoa cai silenciosa e umedece a rua sem tráfego. O silêncio, da cidade adormecida pela pandemia e pela obrigação de ficar em casa, é quebrado pelo latido de alguns cães nas casas ao redor do prédio. Não se ouve o barulho dos carros, nem das motos dos entregadores de comida. O vento assobia de tempos em tempos pelas frestas da porta, batendo uma janela, balançando as folhas das árvores e agitando as flores rosáceas do ipê. Hoje, o final de tarde não será anunciado pela algazarra do bando de maritacas que surge em revoada antes do sol repousar.

 

Os sons da pauliceia mudaram com a pandemia. Há um clima de cidade pequena, de cidade do interior, onde os sons são mais naturais, mais ligados aos eventos da natureza. A chuva que cai no telhado, a batida oca de uma fruta que cai do pé e se acomoda no chão de terra batida, o portão da casa que bate ao ser fechado, o grito de quem chega e bate palma perguntado se há alguém na casa, crianças correndo na rua. A sonoridade da cidade pequena, da cidade acolhedora e familiar, é muito diferente da sinfonia pouco harmoniosa da cidade grande.

 

Outro dia, passava pela avenida Paulista, no meio de uma manhã de dia útil. O semáforo estava verde para os carros, mas não havia carros. Olhei e iniciei a travessia. Cheguei ao canteiro central e do outro lado também os carros estavam ausentes. A cidade marcha em câmara lenta, quase sem ruído, silenciosa, adormecida.

 

Continuei a caminhada até o escritório atentando para os sons. Nenhuma sirene, nenhum camelô anunciando seus produtos, nenhuma conversa de porta de bar, nenhuma pessoa varrendo a calçada, nenhum caminhão fazendo entregas. O silêncio imperava.

 

Deixei minha memória auditiva retornar para a infância, quando as brincadeiras na casa de minha avó eram interrompidas pela buzina do carrinho de sorvete, ou da música instrumental do realejo, da batida seca na tábua do vendedor de biju, do assobio longo do amolador de facas. Uma sinfonia urbana levada pelo tempo e que deixou saudades.

 

E a quarentena, seus sons deixarão saudades? Ou seria a ausência de sons que deixarão saudades? Será que sentimos saudades da sonoridade tão urbana da metrópole em pleno funcionamento?

 

Não me refiro à multiplicação de shows de música em canais de internet e na TV, nem na proliferação de lives, mas daqueles ruídos que quebram o silêncio e ativam nossa memória auditiva. Não me detenho sobre as músicas que tem a capacidade de nos transportar imediatamente para um lugar distante no passado, um momento preciso e exato na vida de cada um, na capacidade de arrepiar a pele ou de provocar olhos marejados.

 

Quero que repare nos sons ao seu redor. Quero convidá-lo, meu amigo leitor, a perceber a sonoridade que o cerca. Abra a janela de sua casa, feche os olhos e escute. Apenas escute. O que mudou nesta quarentena? Algo mudou. A trilha sonora da pauliceia mudou. Hoje, o dia termina silencioso e acinzentado e nem as maritacas saíram de seus abrigos para anunciar o fim do dia com a algazarra do bando. A minha quarentena deixará na memória a quase diária sinfonia dissonante das maritacas.  



domingo, 10 de maio de 2020

Dom de gerar




A mulher ocupa posição privilegiada na obra da criação divina. Somente ela compartilha do ato de criar, algo único e exclusivo, capaz de gerar uma vida, acalentar e cuidar do pequeno ser gestado. 

Criar não é fazer, nem construir. Criar é erguer - a partir de um quase nada - um novo ser humano, único, irrepetível, irreplicável, com todos seus talentos, qualidades, dons. Um ser aberto a amar, um ser eternamente grato pela mãe que o gerou. Se não fosse ela contribuir com a criação, a vida não se realizaria. Ser mãe é abrigar - para sempre - no coração o filho querido. Ser mãe é participar da construção do universo. Ser mãe é levar adiante uma tarefa confiada por Deus, a tarefa da criação.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Humildade e Esperança: duas lições da pandemia







A Páscoa, para os católicos, é a celebração da ressurreição de Cristo, o triunfo da Vida sobre a Morte, um momento de renovação, um avivamento da esperança e da fé. A ressurreição de Cristo é ponto central da fé cristã, pois se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé (Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, v. 15).

A Páscoa, neste ano, caiu no meio de um período de quarentena e isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus. As celebrações foram remotas, feitas por transmissões online, as famílias se confraternizaram por vídeo conferência ou simples telefonemas e, apesar do lindo dia de sol em São Paulo, havia um ar de apreensão persistente no ar. Até quando vamos precisar levar adiante esta quarentena? Até quando não vamos poder trabalhar?

Tenho cá com meus botões que a imagem do Papa Francisco rezando sozinho na Praça de São Pedro, durante a quaresma num dia chuvoso e frio em Roma, ficará marcada por anos como a imagem que melhor refletirá esta pandemia: o isolamento, a solidão, a tristeza, a dor.

Este período de isolamento impõe-nos o exercício – ou o crescimento – de duas virtudes essenciais para a manutenção de um espírito de alegria e bom humor: a humildade e a esperança. Duas virtudes – ou qualidades, se assim preferir – que são armas efetivas contra a tristeza que pode nos invadir nestes momentos.

A humildade, que para muitos é uma qualidade mal vista ou tida como algo prejudicial, é o reconhecimento de que nossas qualidades e dons e talentos não são decorrentes de mérito próprio, mas nos são dados, presentes divinos que devemos dar bom destino. A humildade é o reconhecimento de nossas fraquezas, de nossos defeitos, da nossa realidade nua e crua. Este reconhecimento nos conduz – ou deveria nos conduzir – a um estado de agradecimento constante pelo que temos, pelo que nos é dado, pelo simples fato de estarmos vivos. A vida é um presente e cada minuto vivido é uma dádiva.

Em tempos de Covid-19, basta olharmos ao nosso redor para percebermos motivos para sermos gratos. Se temos uma casa para morar, comida na mesa, uma cama para dormir, isto já nos coloca numa minoria da população mundial. Se tivermos a consciência de que isto não é resultado de mérito próprio, mas que nossa condição é um presente, seremos menos arrogantes e muito mais abertos ao outro, à prática de atos concretos de solidariedade. Doar alimentos, permitir que um funcionário fique em casa para evitar deslocamentos sem prejuízo  do pagamento dos salários, contribuir com causas que sejam confiáveis, estender a mão para um amigo que necessita de uma palavra ou de um ouvido atento – ainda que à distância. Tudo isto é consequência de uma consciência clara de nossa realidade que só a humildade pode nos revelar. Quando nos damos conta de nossa pequenez, olhamos para o outro com empatia e isso nos move a ajudar e agir.

A outra virtude é a esperança. Esperar é confiar de que isto passará, de que as coisas terrenas são transitórias.  Para quem acredita em Deus, é a certeza de que todas as coisas concorrem para o bem daquele que acredita em Deus. Não se trata de ser passivo, mas de agir com a confiança de que nosso esforço terá um resultado positivo. Isto pode significar passar por períodos difíceis, doloridos, até momentos em que parece não haver luz no fim do túnel. Tudo serve para um crescimento pessoal, uma nova forma de compreender a realidade e de dar valor para aquilo que temos no presente.

Ter esperança ajuda-nos a manter a moral elevada, o bom humor diante das dificuldades, abraçar o sacrifício do isolamento social com a alegria de saber que estamos contribuindo para a preservação de vidas – e talvez da nossa própria vida. A esperança é um elemento essencial para manter a sanidade, o equilíbrio, para dar propósito a esta fase de nossas vidas.

É possível ignorar tudo isto que escrevi acima, mas reflita um pouco e perceberá que este tempo de provação tem um sentido – um sentido diferente para cada um de nós –, um convite para o crescimento pessoal. Por que não aproveitar esta oportunidade? Por que não praticar um gesto concreto de solidariedade?



segunda-feira, 6 de abril de 2020

Microconto



- Boa noite! Sonhe comigo! - escreveu na mensagem do celular.

- Não preciso dormir para sonhar contigo. Basta-me o tempo.

terça-feira, 31 de março de 2020

Crônica do início de uma quarentena


A semana começou de forma estranha, um clima de apreensão no ar, uma expectativa que se confundia com ansiedade, as escolas e universidades tiveram suas aulas suspensas, o trânsito ficou mais leve, o fluxo de pessoas na São Paulo acelerada diminuiu, o rodízio foi suspenso, o som da cidade mudou. Sempre dei muita atenção para o som da cidade, seus ruídos, sua sinfonia urbana. Noto as mais sutis mudanças, deixo-me encantar pelos sons de pássaros, pela algazarra das maritacas no final de tarde. Caminhávamos tateando cada passo e no aguardo de uma diretriz, um grito de liderança que se mostraria mais tarde polifônico, dissonante.

Na quinta-feira, dia 19 de março, dia de São José, fui ao escritório pela manhã seguindo a rotina diária. Peguei o jornal e fui tomar café. Perguntei para a atendente sobre o movimento na loja e ela respondeu que havia caído e que amanhã fechariam, sem previsão para reabertura. O estado de emergência estava instalado pelo prefeito, pelo governador e pelo presidente da república. Tomei o café, li o jornal sem pressa e despedi-me da atendente desejando que se cuidasse.

Ao sair na rua, o céu estava cinza claro, nuvens baixas que se assemelhavam a uma bruma, um calor abafado e a ausência de carros e motos na rua era notável às nove da manhã. Ouvi então um barulho que vinha do alto e parecia de uma aeronave. Na hora, fui teletransportado para a Londres de 1940 e imaginei que veria no céu um avião da Luftwaffe prestes a lançar sua carga de bombas sobre a capital do império britânico. A palavra guerra, tão usada pelos nossos governantes, instalou-se no meu subconsciente e a imagem me deixou desnorteado. Olhei para o alto e passou um helicóptero.  Segui meu rumo com serenidade, mas o clima era de tristeza e medo. Algo de estranho pairava no ar.

O dia transcorreu sem que o telefone tocasse. As páginas de notícias de jornais, as estações de rádio só tratavam do coronavírus. A pandemia já estava entre nós e era preciso ficar em casa. O tempo todo e todo mundo. São Paulo seria o epicentro da contaminação, a cidade mais cosmopolita do Brasil.

O vírus microscópico não deixa estragos na paisagem, como uma tempestade, um vendaval, um furacão, um terremoto. O vírus é silencioso. Esta forma de agir é que deixa tudo estranho e confuso. Os dias de quarentena serão sábados – ou domingos ou feriados – que se repetirão sem data para terminar. Ficar em casa nos impedirá de experimentar a cidade fantasma em que São Paulo se transformará.

Naquela noite, as imagens de entrevistas coletivas revelavam um futuro de colapso do sistema de saúde, de caos na economia, de cadáveres se acumulando, de gente faminta, de ruas abandonadas e uma cidade paralisada.  Traçaram um cenário apocalíptico. Seria risível, exagerado e inverossímil se não houvesse notícias das mortes na Itália, Espanha e os primeiros casos nos EUA. 

Políticos cederam lugar a médicos infectologistas, pneumologistas, secretários de saúde, ministro da saúde. O inimigo é invisível, mas devastador, disseram de forma unânime. Lavem as mãos, usem álcool gel, não saiam de casa. O mantra se repetia em todos os canais de televisão, rádios, sites noticiosos na internet.  Pessoas esgotaram os estoques de álcool gel e máscaras cirúrgicas das farmácias e supermercados. O papel higiênico virou item de primeira necessidade nos estoques residenciais.  Um medo contido tomou conta da população, com exceção daqueles que acham que se trata de uma gripezinha.

Não houve histeria ou pânico generalizado, mas uma aflição coletiva. O abastecimento dos supermercados seguiu o ritmo normal. O mesmo se dá nas farmácias e postos de gasolina. Os serviços essenciais seguem funcionando, mas temos que ficar em casa.  Alguns sentem mais o medo, ou melhor, alguns deixam-se tomar pelo medo da incerteza, da ausência de horizonte. Quando isso tudo vai acabar? Ninguém sabe, ninguém tem a resposta e a incerteza amedronta, paralisa, tira-nos a racionalidade.

A invisibilidade do inimigo deveria nos deixar menos aflitos, mas depois de uma semana inteira de quarentena, as pessoas estão com as emoções à flor da pele. O medo corrói a coragem e nos drena. Precisamos de forças para caminhar um passo por vez.  Meu otimismo realista me leva a ter esperança e fé de que vamos superar esta batalha.

Em momentos como este, manter a serenidade, o equilíbrio é fundamental para a sanidade. Em tempos de pandemia, vale a pena desligar a televisão. Não se trata de apontar o dedo para o ministro da saúde e acusá-lo de atacar a imprensa. A imprensa faz o seu trabalho, mas o excesso de notícias sobre a pandemia faz mal para a saúde mental. Respire, deixe-se respirar, não se cobre tanto, como escreveu Mafê Probst.  Pare de contar os casos, deixe o tempo correr e siga um dia por vez.  Teremos mais capítulos pela frente.


A pandemia vai acabar e sairemos melhores e mais humanos desta batalha invisível.  

quarta-feira, 25 de março de 2020

Quarentena e confinamento: dicas de sobrevivência


Mãos na massa 


Ao redor do mundo, milhões de pessoas estão em quarentena e confinamento domiciliar. A pandemia do coronavírus impôs ao mundo a maior restrição circulatória desde a Segunda Guerra Mundial. De repente, nos vemos reclusos em casa, com tempo de sobra e tentando ocupá-lo. O que fazer? Vamos a algumas dicas e ideias para tentar tornar mais leve e produtivo este período de quarentena.

1. Estabeleça um horário - organize seu dia e crie uma nova rotina. Se você vai trabalhar em casa, fixe um horário para realizar as tarefas profissionais e procure focar no trabalho. No tempo livre, organize atividades que lhe tragam prazer e distração e que sejam diferentes do que você costuma fazer habitualmente.

2. Ouça música - aproveite para explorar novos estilos, bandas, cantores. Faça um teste, use letras aleatórias no sistema de busca de algum app de música (spotify, dever, iTunes) e veja o que aparece. Algo novo que pode lhe surpreender. Ou então, deixe-se embalar por suas músicas preferidas, crie uma playlist para servir de trilha sonora da quarentena, algo que lhe traga boas memórias.

3. Leia um livro (ou vários livros) - ler é uma viagem, uma experiência enriquecedora, que ativa a memória, enriquece o vocabulário e aumenta nosso conhecimento. Sempre haverá um livro sobre um assunto que lhe interessa. Novamente, tente sair da zona de conforto, leia algo diferente, um clássico, um livro de história sobre pandemias no passado, um romance sobre algo contemporâneo. O importante é usar o tempo com boa leitura.

4. Aprenda uma nova língua - há inúmeros apps que ensinam línguas estrangeiras de forma gratuita. Um exemplo é o duolingo. Uma nova língua expande horizontes e pode ser uma ótima ferramenta em sua próxima viagem internacional. Não vai viajar? Então aprimore o inglês ou o espanhol, competências muito úteis na vida profissional. Já fala estas duas línguas? Então mergulhe nos podcasts do TEDx en español ou o TEDx em inglês. São uma ótima forma de adquirir conhecimento e treinar a língua estrangeira.

5. Reze, medite, reflita sobre a vida - é preciso cuidar da alma neste período. Manter a esperança e refletir. Se você acredita em Deus, tire um tempo para rezar, ler um livro que trata de temas espirituais. Há diversas livrarias que fazem entregas e você pode comprar o livro online. Se você não pratica nenhuma religião, medite, pare uns minutos ao longo do dia para meditar e pensar sobre o que está acontecendo no mundo, na sua vida, com sua família. Este é um ótimo momento para crescimento espiritual.

6. Faça um curso online - diversas plataformas estão disponibilizando acesso gratuito aos seus cursos online. Procure algo que lhe interessa e fuja apenas dos cursos profissionais. Faça um curso sobre história da arte, um curso sobre literatura, culinária. Ache algo que lhe interessa mas que você nunca teve tempo para se dedicar.

7. Organize armários - faça uma limpeza em armários e na casa. Tire roupas velhas ou que não utiliza mais e aproveite para separá-las para doação. Há muita gente necessitada e o inverno se aproxima. Sua doação servirá para ajudar muitas pessoas em estado de necessidade.

8. Faça algo novo - monte sua árvore genealógica, escreva um livro com os filhos, faça um curta metragem, entre com contato com familiares que você não conversa há muito tempo, faça uma live da crianças com os avós, aprenda a cozinhar, cuide de plantas, organize um álbum de fotografias.

9. Aproveite a tecnologia para manter o contato social - utilize as redes sociais de forma cordial e de modo a reatar contatos ou construir novos contatos. Vamos deixar de lado as picuinhas e implicâncias políticas e tentar construir pontes. A hora não é para incrementar o ódio, mas para pacificar os ânimos. Há apps, como House Party, que permitem várias pessoas jogar um jogo por vídeo conferência. Aliás, a vídeo conferência está em alta nestes tempos, revelando que Skype já era e está em muito superado.

10. Cozinhe - o ato de cozinhar é um ato de amor e um ato de união familiar. Não tem ideia de como fazer arroz? Procure um vídeo ou site de receitas e aprenda. Saber cozinhar é uma questão de sobrevivência e uma tarefa manual que distrai e enche de prazer. Se alguém na sua casa sabe cozinhar, peça que lhe ensine. Os adolescentes podem ter muito proveito destas aulas caseiras.

O importante é saber ocupar o tempo de forma produtiva, aproveitar o ócio para criar, inovar, pensar e se reinventar. Quanto tempo vai durar a quarentena? Não tenho ideia, mas o importante é aproveitar o tempo e não enlouquecer.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Pandemia - uma breve reflexão



Depois de 16 anos, este é o milésimo post deste blog.  Mil postagens. Sem dúvida, nos últimos anos, o ritmo diminuiu, o meio “blog” virou vintage, deixou de ser uma forma mais popular, sendo ultrapassado por podcasts, vídeos e afins. Mas o texto permanece e é atemporal. A poesia de Fernando Pessoa reina como o assunto mais pesquisado e lido neste blog.

Tinha várias ideias para celebrar este marco do blog, mas a realidade sempre nos surpreende e oferece a matéria prima de que necessitamos para refletir, pensar e trabalhar. Trabalhar a realidade, moldá-la para tentar entender este mundo contemporâneo, ou ao menos, fazer um esforço por compreendê-lo.

Eu, assim como todos os brasileiros, estou em quarentena. Um isolamento domiciliar que é compartilhado com milhões de pessoas ao redor do mundo em decorrência da pandemia causada pelo coronavírus e a Covid-19, doença causada pelo vírus.

O ser humano é um animal essencialmente social, pontificou Aristóteles. E agora, vemo-nos obrigados à reclusão, a uma clausura não voluntária, mas imposta. A clausura é uma escolha de vida para religiosos e religiosas contemplativos católicos, que se afastam do mundo e vivem uma vida de oração e trabalho. Carmelitas e beneditinos são ordens religiosas que seguem este carisma.  A vida de oração contemplativa, quase sem falar, sem convívio com o mundo exterior do convento ou do mosteiro.

Hoje, somos obrigados a abraçar um estilo de vida de isolamento, temporário claro, mas um estilo de vida que não condiz com o cosmopolitismo das cidades e com a interação social tão cara ao povo brasileiro. Iniciamos neste período de quarentena a travessia de um deserto. Não sabemos por quanto tempo ficaremos reclusos, não sabemos o que nos espera ao final da travessia, não sabemos que intempéries serão enfrentadas. A incerteza pode gerar medo. É natural, mas precisamos buscar a serenidade e a esperança para realizar a travessia deste deserto com sucesso.

Em 1374, foi ordenada a quarentena de todos os cidadãos de Veneza para evitar o contágio com o “ar envenenado” pela Peste Negra, que dizimou metade da população europeia. Em 1569, a grande peste que atingiu Lisboa levou a uma fuga em massa da cidade. Narrativas daquela época relatam que havia um ar triste na cidade, abandonada e largada ao destino.

A realidade hoje é outra. Podemos fazer a quarentena com certo conforto, com acesso a informação e aos meios de comunicação, não falta comida e nem água e a ciência evoluiu muito desde então.

Vejo muitos reclamarem. Vejo muitos apontarem o dedo e incitarem o conflito. Penso que a hora é de reflexão pessoal, penso que nos é dado uma oportunidade de vivermos de forma contemplativa por algumas semanas, reclusos como se num retiro espiritual – chame de jornada se preferir. Não por acaso, tudo isto acontece durante o período da quaresma para os católicos. Um período de penitência, de exercício fraterno de caridade, de conversão de vida, de mudança. Um período que nos leva a olhar para a frente, com fé e esperança, pois uma nova fase se inicia com a Páscoa.

Não quero aqui tentar justificar esta pandemia, não é esta minha pretensão, mas quero provocar uma reflexão – já que temos tempo sobrando para fazê-la – sobre a transcendência do ser humano, da caridade, da solidariedade, da generosidade, da empatia. Penso que este momento é muito oportuno para exercitarmos estas virtudes, estas qualidades humanas (se assim preferirem).


Antes de reclamar, agradeça pelo que tem e pelo que lhe é dado. Antes de ter medo, olhe para frente com esperança e pense como mudar sua forma de agir após a sua saída da clausura. A travessia do deserto deve ser feita um dia por vez, serenamente, com fortaleza e resiliência. Aproveite o tempo que é dado, pois o tempo é um bem muito escasso e caro na contemporaneidade.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Trechos: Das terras bárbaras, de Ricardo da Costa Aguiar



"Afinal, se um anjo tinha sucumbido ao peso do orgulho, da inveja e da cobiça, o que esperar de nós, carne fraca? O anjo caído era uma vítima que merecia minha compaixão, eu o reconhecia em mim. Estudante, mudei essa imagem do Mal, transmutei-o em uma bela figura filosófica. Passou a ser a ausência do Bem, como o escuro é a ausência da luz. Passou a ser o lado animal dos homens, pronto a sucumbir sob a razão e o espírito. O Mal era inerte, uma sombra adormecida que se afastava na presença de tudo o que é puro. foi no calor de Maruery que o conheci como de fato ele é, viscoso e grudento. Ali eu o vi de perto, fétido e deformado, rouco e irracional."
(Ricardo da Costa Aguiar, Das terras bárbaras, São Paulo : Tordesilhas, 2019, p.112-3)

O romance de estreia de Ricardo da Costa Aguiar foi uma grata surpresa. Texto requintado, trabalho cuidadoso nas citações de latim que se espalham pelo texto. Além de ser ótima leitura, o romance ainda nos incrementa a cultura.

O romance traz duas estórias em paralelo: um jovem diplomata e sua busca pelos antepassados e um jovem jesuíta que parte da metrópole para a colônia, e na colônia se depara com sua queda, causado ou não pelo anjo caído.

Chamou-me mais atenção os detalhes com que a narrativa retrata a viagem de Lisboa a Salvador, depois a vida na colônia, a capital Salvador no seu esplendor, a pequena São Vicente e a subida da Serra do Mar até Piratininga e Maruery (hoje Barueri, e que outrora foi uma grande aldeia indígena). O escritor desvela toda sua cultura histórica e ensina enquanto entretém o leitor com uma trama bem costurada.

No final, o livro se torna um pouco previsível, mas não tira o mérito da obra. Vale a leitura.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Memória: Matriarcas



(c) rbueloni


Voltando de férias no Uruguai, dei-me conta que minhas avós sobreviveram aos meus avôs. Um morreu em 1977 e o outro em 1990, no dia 15 de março, dia da posse de Fernando Collor. Boa parte da minha pós adolescência foi de convívio com as matriarcas da família. Percebo que a história se repete e meus filhos deparam-se com semelhante realidade. O convívio com os avôs foi breve, mas deixou suas boas memórias. Agora aproveitam o tempo com as avós, um pouco debilitadas na locomoção, mas lúcidas, sozinhas e independentes.

Quantas mulheres não sobrevivem aos seus maridos? Ouso dizer que a maioria e se adaptam bem a uma nova realidade, uma nova fase de aprendizado e de superação do medo. De repente, tem que administrar as finanças da casa, lidar com trâmites burocráticos e jurídicos. Não estou aqui a dizer que estas tarefas são "coisa do homem da casa", mas ainda são costumeiramente realizadas pelos maridos. Navegar pelo internet banking pode ser um tormento, mas elas aprendem rápido, são curiosas e descobrem um mundo diferente.

Minha mãe está aprendendo a viver só e a lidar com um mundo tecnológico onde operações bancárias são feitas todas por aplicativos,  a pedir ajuda aos filhos e reconhecer que este pedido de ajuda não indica fraqueza ou debilidade, mas é antes de tudo um exercício de humildade. Para os filhos, é uma realidade onde deixamos de ser cuidados e passamos a cuidar. Esta realidade chega de repente e só percebemos isto ao acompanhar o pai ou mãe num leito de hospital.

Quando se percebe, o tempo passou e não corremos para o colo seguro do pai e da mãe, agora somos nós os responsáveis por carregá-los, apoiá-los, ajudá-los. De adultos fortes, a fragilidade toma conta dos pais e descortina o inevitável  ciclo da vida. O tempo é cruel e não espera. Se demorarmos a perceber esta mudança de fase da vida, o tempo acaba. Não é possível fazer uma pausa ou estancar o caminhar constante do tempo. O importante é ter a consciência dessa realidade e sorver o tempo, não deixando que uma oportunidade sequer passe sem que possamos dizer um "sim" a quem nos pede ajuda, ou apenas um pouco de tempo e atenção.




quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Que venha 2020!



Que em 2020 deixemos a vida mais simples, que olhemos nos olhos, que nos desconectemos dos celulares, que apreciemos o aroma do café e de temperos na panela, do alimento fresco preparado com carinho na companhia de amigos, que tiremos tempo para conversar e contemplar o cotidiano à nossa volta, as flores, as árvores, a chuva que cai, um raio de sol que adentra a janela.

Que deixemos brotar um sorriso de bom dia, que saudemos as pessoas de nosso convívio pelo nome, que escutemos a música e deixemos aflorar as boas memórias, que abracemos aqueles que são mais velhos e participam de nossas vidas, que desfrutemos das conquistas e lutas diárias e que saibamos estender a mão para quem está do nosso lado! Que 2020 sopre bons ventos em nossas vidas!

Resoluções? Basta querer mudar o que você acha que precisa mudar e aproveite o tempo para descobrir e aprender algo novo!

Feliz 2020!