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UM DIA APÓS O OUTRO
Foi o primeiro dia que saiu de casa desde o ocorrido. Tomou
seu café da manhã, um copo de leite, uma torrada com geleia de damasco, uma
fatia de queijo branco e vários remédios. Coloridos e multiformas. Alguns pela
manhã, outros no meio do dia e os da manhã se repetiam à noite antes de dormir.
O dia estava cinzento, uma garoa fina e constante a cair sobre a pauliceia
desvairada. Olhou pela janela do apartamento. Recusou o guarda-chuva e fisgou
um boné azul escuro e bem desgastado do armário.
Tinha medo de voltar a caminhar sozinho. Suas mãos tremiam
ao segurar as chaves para abrir a porta. Hesitou. Fechou os olhos e a imagem se
repetiu mais uma vez, como tantas outras vezes nestes últimos quatro meses. Com
a mão esquerda, ajudou sua mão direita a encontrar o buraco da fechadura. Girou
a chave e deu um passo para o hall do elevador. A jaqueta que vestia e que
deveria lhe proteger da chuva, agora impedia o suor frio de evaporar. Tentou
relaxar. Soltou os braços e balançou-os lentamente. Um homem de setenta e dois
anos não devia temer a morte, pensou. Mas não era a morte que ele temia, era o
rancor, os assuntos mal resolvidos, era o tempo se esgotar antes de que pudesse
terminar o que havia começado – ou tantos outros assuntos que haviam terminado
mal.
A avenida Paulista, em seu trecho final no Paraíso, era seu quintal há mais de quarenta
anos. Por trás do portão do prédio observou uma infinidade guarda-chuvas
coloridos, dançando e girando, formando uma massa disforme se observado do alto,
alguns movimentando-se de forma apressada, outros a passos lentos, como se a
vida e o tempo pudessem desacelerados. Antes, todos os guarda-chuvas eram
pretos e duravam uma vida toda. Agora são chineses, vagabundos, frágeis,
descartáveis, como os aparelhos eletrônicos, os móveis, os utensílios
domésticos, os relacionamentos, o amor, a vida. Vivemos num mundo descartável.
É mais fácil – e barato – trocar do que consertar, do que por dinheiro bom num
conserto realizado por alguém incapaz ou despreparado. Sabem vender, mas não
sabem remendar.
Um pouco mais sereno, abriu o portão e deu o primeiro passo
na calçada lisa da Paulista. Enfiou as mãos no bolso e deixou que seu rosto
fosse beijado pelas gotículas geladas da garoa forte. Uma bruma gris, quase uma
névoa formara-se cobrindo o cume dos prédios e as antenas de TV da avenida tão
paulistana. Os primeiros passos foram temerários, depois, aos poucos, encontrou
um ritmo cadenciado, nem apressado, nem lento, mas reflexivo. Observava os
rostos anônimos que cruzavam seu caminho nas largas calçadas. Sempre gostou de
agir assim, de analisar os outros, os rostos, de tentar adivinhar o que se
passava em suas vidas. Perguntava-se o porquê daquelas pessoas não serem seus
amigos, seus conhecidos, por que apenas algumas pessoas entram em nossas vidas
e por que as deixamos ficar. Talvez a culpa seja das estrelas ou dos dias de um
futuro esquecido, pensou reparando em cartazes que anunciavam os filmes no
circuito de cinemas. Em exibição em grande circuito, pensou e riu lembrando dos
anúncios de filmes de tempos passados. Agora havia TV a cabo, netflix, sites
piratas para baixar filmes. Permanecia antiquado e preferia ir ao cinema, ou
assistir na televisão. Nada de pirataria. Era um cumpridor da lei.
Uma freada brusca de um carro assustou-o com o barulho,
tanto que deu um sobressalto, coração disparado. Olhou ao redor. Avistou dois
policiais mais adiante e tranquilizou-se. Deixou que seus devaneios voltassem
às pessoas que vinham na direção contrária. Algumas falavam no telefone, outras
com os fones de ouvido conectados ao celular e alienadas do mundo e do entorno.
Quando deixou de escrever sua coluna quinzenal na Folha por conta do ocorrido,
as estórias que encontrava escondidas por aí deixaram de ter importância. A
escrita fora silenciada pelo barulho ensurdecedor do tiro. Aquela manhã era a
primeira vez que sentira saudade de escrever. Seu editor insistiu que ele
continuasse a escrever, iria lhe fazer bem, disse, ocupará sua mente, seria uma
forma de terapia, de avançar, de seguir com a vida. Mas ele fora intransigente.
Precisava de uma pausa, de uma longa pausa, talvez até de uma pausa definitiva.
O tempo é cruel e repleto de mudanças. A casa que outrora
fora o símbolo dos industriais paulistas havia sido demolida. A casa dos
Matarazzo agora cedera espaço a um shopping, um hotel e um edifício comercial.
A construção subia rapidamente na esquina da Paulista com Pamplona. A caminhada
seguia bem e estava surpreso em como estava calmo, aquele território era o seu
chão, sua ligação com a cidade, com as pessoas, com a vida.
A garoa apertou e entrou no Conjunto Nacional para se
abrigar e tomar um café. Ali o tempo quase congelara. A arquitetura mantida
quase que original, o piso de pedra portuguesa em preto e branco, as agências
bancárias, os escritórios, o burburinho constante de gente passando. O cine
Astor cedera lugar a uma gigantesca livraria, o que muito lhe agradava. As
enormes rampas curvas no centro do saguão pareciam se enroscar na coluna dos
elevadores como cobras abraçando uma árvore. Os resquícios de seu tempo ainda
eram visíveis naquele cenário, algo que lhe trazia um certo conforto e paz
interior.
Seguiu a diante, cruzou a Augusta e a garoa havia cedido,
quase parado. O boné estava molhado. A jaqueta era impermeável e gotas haviam
escorrido sem impregnar o tecido. Parou numa banca de jornal e comprou umas
balinhas. Passou os olhos pelas manchetes dos jornais. O assunto era a Copa do
Mundo, o discurso ridículo e ufanista da anta que governava o país, da greve
dos metroviários que acabara quando os pelegos foram postos na rua – lugar onde
todo vagabundo que não quer trabalhar deveria ir -, da previsão do FMI de que o
país terá um crescimento pífio e mais algumas desgraças, como de costume.
Entrou na rua Haddock Lobo e desceu duas quadras em direção
aos Jardins. Parou diante do número 961. Tocou a campainha e esperou o porteiro
perguntar o que ele queria. Com vez fraca e titubeante, respondeu:
- Gostaria de falar com a Sra. Alice do apartamento 41.