terça-feira, 17 de junho de 2014

Conto: Um dia após o outro


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UM DIA APÓS O OUTRO

Foi o primeiro dia que saiu de casa desde o ocorrido. Tomou seu café da manhã, um copo de leite, uma torrada com geleia de damasco, uma fatia de queijo branco e vários remédios. Coloridos e multiformas. Alguns pela manhã, outros no meio do dia e os da manhã se repetiam à noite antes de dormir. O dia estava cinzento, uma garoa fina e constante a cair sobre a pauliceia desvairada. Olhou pela janela do apartamento. Recusou o guarda-chuva e fisgou um boné azul escuro e bem desgastado do armário.

Tinha medo de voltar a caminhar sozinho. Suas mãos tremiam ao segurar as chaves para abrir a porta. Hesitou. Fechou os olhos e a imagem se repetiu mais uma vez, como tantas outras vezes nestes últimos quatro meses. Com a mão esquerda, ajudou sua mão direita a encontrar o buraco da fechadura. Girou a chave e deu um passo para o hall do elevador. A jaqueta que vestia e que deveria lhe proteger da chuva, agora impedia o suor frio de evaporar. Tentou relaxar. Soltou os braços e balançou-os lentamente. Um homem de setenta e dois anos não devia temer a morte, pensou. Mas não era a morte que ele temia, era o rancor, os assuntos mal resolvidos, era o tempo se esgotar antes de que pudesse terminar o que havia começado – ou tantos outros assuntos que haviam terminado mal.

A avenida Paulista, em seu trecho final no Paraíso,  era seu quintal há mais de quarenta anos. Por trás do portão do prédio observou uma infinidade guarda-chuvas coloridos, dançando e girando, formando uma massa disforme se observado do alto, alguns movimentando-se de forma apressada, outros a passos lentos, como se a vida e o tempo pudessem desacelerados. Antes, todos os guarda-chuvas eram pretos e duravam uma vida toda. Agora são chineses, vagabundos, frágeis, descartáveis, como os aparelhos eletrônicos, os móveis, os utensílios domésticos, os relacionamentos, o amor, a vida. Vivemos num mundo descartável. É mais fácil – e barato – trocar do que consertar, do que por dinheiro bom num conserto realizado por alguém incapaz ou despreparado. Sabem vender, mas não sabem remendar.

Um pouco mais sereno, abriu o portão e deu o primeiro passo na calçada lisa da Paulista. Enfiou as mãos no bolso e deixou que seu rosto fosse beijado pelas gotículas geladas da garoa forte. Uma bruma gris, quase uma névoa formara-se cobrindo o cume dos prédios e as antenas de TV da avenida tão paulistana. Os primeiros passos foram temerários, depois, aos poucos, encontrou um ritmo cadenciado, nem apressado, nem lento, mas reflexivo. Observava os rostos anônimos que cruzavam seu caminho nas largas calçadas. Sempre gostou de agir assim, de analisar os outros, os rostos, de tentar adivinhar o que se passava em suas vidas. Perguntava-se o porquê daquelas pessoas não serem seus amigos, seus conhecidos, por que apenas algumas pessoas entram em nossas vidas e por que as deixamos ficar. Talvez a culpa seja das estrelas ou dos dias de um futuro esquecido, pensou reparando em cartazes que anunciavam os filmes no circuito de cinemas. Em exibição em grande circuito, pensou e riu lembrando dos anúncios de filmes de tempos passados. Agora havia TV a cabo, netflix, sites piratas para baixar filmes. Permanecia antiquado e preferia ir ao cinema, ou assistir na televisão. Nada de pirataria. Era um cumpridor da lei.

Uma freada brusca de um carro assustou-o com o barulho, tanto que deu um sobressalto, coração disparado. Olhou ao redor. Avistou dois policiais mais adiante e tranquilizou-se. Deixou que seus devaneios voltassem às pessoas que vinham na direção contrária. Algumas falavam no telefone, outras com os fones de ouvido conectados ao celular e alienadas do mundo e do entorno. Quando deixou de escrever sua coluna quinzenal na Folha por conta do ocorrido, as estórias que encontrava escondidas por aí deixaram de ter importância. A escrita fora silenciada pelo barulho ensurdecedor do tiro. Aquela manhã era a primeira vez que sentira saudade de escrever. Seu editor insistiu que ele continuasse a escrever, iria lhe fazer bem, disse, ocupará sua mente, seria uma forma de terapia, de avançar, de seguir com a vida. Mas ele fora intransigente. Precisava de uma pausa, de uma longa pausa, talvez até de uma pausa definitiva.

O tempo é cruel e repleto de mudanças. A casa que outrora fora o símbolo dos industriais paulistas havia sido demolida. A casa dos Matarazzo agora cedera espaço a um shopping, um hotel e um edifício comercial. A construção subia rapidamente na esquina da Paulista com Pamplona. A caminhada seguia bem e estava surpreso em como estava calmo, aquele território era o seu chão, sua ligação com a cidade, com as pessoas, com a vida.

A garoa apertou e entrou no Conjunto Nacional para se abrigar e tomar um café. Ali o tempo quase congelara. A arquitetura mantida quase que original, o piso de pedra portuguesa em preto e branco, as agências bancárias, os escritórios, o burburinho constante de gente passando. O cine Astor cedera lugar a uma gigantesca livraria, o que muito lhe agradava. As enormes rampas curvas no centro do saguão pareciam se enroscar na coluna dos elevadores como cobras abraçando uma árvore. Os resquícios de seu tempo ainda eram visíveis naquele cenário, algo que lhe trazia um certo conforto e paz interior.

Seguiu a diante, cruzou a Augusta e a garoa havia cedido, quase parado. O boné estava molhado. A jaqueta era impermeável e gotas haviam escorrido sem impregnar o tecido. Parou numa banca de jornal e comprou umas balinhas. Passou os olhos pelas manchetes dos jornais. O assunto era a Copa do Mundo, o discurso ridículo e ufanista da anta que governava o país, da greve dos metroviários que acabara quando os pelegos foram postos na rua – lugar onde todo vagabundo que não quer trabalhar deveria ir -, da previsão do FMI de que o país terá um crescimento pífio e mais algumas desgraças, como de costume.

Entrou na rua Haddock Lobo e desceu duas quadras em direção aos Jardins. Parou diante do número 961. Tocou a campainha e esperou o porteiro perguntar o que ele queria. Com vez fraca e titubeante, respondeu:


- Gostaria de falar com a  Sra. Alice do apartamento 41.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro me deparar com esta deliciosa e charmosa melancolia paulistana! Mari