segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Crônica: Doente


DOENTE


Poderia cantar as belezas da minha terra, descobertas na infância e aprofundadas na adolescência. Era um pássaro livre que voava sobre as matas, um peixe a mergulhar no rio e deslizar pelas cachoeiras. Arisco e serelepe, não me aquietava nunca com toda aquela imensidão e liberdade. As flores, o cheiro do capim e da terra molhada após uma chuva de verão. O orvalho matinal nas manhãs frias de inverno a refletir a luz e dar a nítida impressão de um campo de minúsculos diamantes. Poderia cantar algo mais?

Poderia sim. Poderia e quero! Quero cantar os louvores da minha terra e as alegrias da memória. Que memória? Quero. Quero com todo o meu ser; quero de forma fervorosa e intensa. Quero, mas não posso.

Não posso sequer alimentar-me sozinho. Estou preso a uma cama, na qual passo meus dias remanescentes, assistindo ao sol nascer por uma janela entre enormes prédios manchados pela fuligem, ouvindo as maritacas que me acordam e planam sobre algumas árvores e alguns telhados das casas que ainda restam no bairro.

Os músculos não obedecem. Sinto a lucidez declinante da velhice, sinto a memória repleta de buracos negros e brancos. Quero lembrar, mas não consigo. Quero louvar, mas me faltam as palavras, a concatenação de ideias, a linearidade do raciocínio. Meu rosto traz consigo o relevo do tempo, as mãos enrugadas e amarfanhadas como um pedaço de papel amassado e pisoteado pela vida. Os olhos esforçam-se por identificar a figura que se desenha ao meu lado, num esforço para encontrar na memória o nome correto e permitir que eu sorria ao deparar-me com um rosto familiar.

Estou velho e doente. Abraço minha doença e não reclamo. Pacífico, encontro neste momento uma nova aventura, surreal, diriam alguns, mas que me conduz por trechos íngremes e planícies, por rios e cachoeiras, por matas virgens, como aquelas da minha terra, que tanto queria louvar. Até na doença e na debilidade há beleza.

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