quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Crônicas peruanas - Laguna Humantay

 

Laguna Humantay - @rbueloni



Cuzco,  22 de agosto de 2025

 

O despertador tocou alguns minutos depois das quatro da manhã. Era o último passeio que havíamos programado e talvez o mais exigente. Estava um pouco apreensivo, a começar pelo horário de acordar, mas resolvi juntar-me a minha filha e amiga na excursão até a Laguna Humantay.

O lobby do hotel estava escuro e havia apenas duas pessoas na recepção. O pátio central em estilo colonial espanhol trazia um ar medieval com a pouca luminosidade e a decoração que ressaltava a arte cusquenha. O atendente perguntou se havíamos pedido o café da manhã antecipado, mas esquecera de solicitar. É comum fornecerem um lanche para viagem, pois muitos passeios saem bem cedo, com o dia ainda escuro.

Pouco antes das cinco, a van de transporte chegou e o porteiro abriu a pesada porta de madeira. Brinquei com ele sobre ser o porteiro do castelo. Ele sorriu revelando o bom humor apesar da hora. Explicou-me que não fabricam mais portas de madeira maciça e com detalhes em metal. Hoje, tudo é mais leve e simples, disse-me.

Juntamo-nos ao grupo de turistas no veículo quase cheio. Logo em seguida, uma parada na Plaza de Armas, antigo centro do império Inca e ponto de encontro para os inúmeros passeios que partem de Cuzco. Algumas pessoas a mais entraram na van, que partiu lotada. Nosso guia, Fredy, deu instruções sobre o trajeto e o que iríamos encontrar. Alertou que havia oxigênio caso alguém necessitasse, afinal, a Laguna Humantay ficava a 4200 metros de altitude, ou seja, 800 metros a  mais do que Cuzco. Pensei comigo que isso seria desnecessário, pois já estava aclimatado à altitude. Fredy sugeriu que dormíssemos por duas horas antes da parada para o café da manhã. A van seguiu pela estrada sinuosa, deixando Cuzco para trás e percorrendo uma região de vale cultivado. Logo peguei no sono.

A parada para o café da manhã foi em Mollepata, um pequeno povoado e início de uma estrada de terra que nos levaria até a base da subida para a Laguna Humantay. O nosso grupo era composto por mexicanos, espanhóis e colombianos. Éramos os únicos brasileiros, o que deu um ar de comunidade latina muito divertida. Seguimos por uma hora por uma estrada de terra até o ponto de início de nossa subida, em Soraypampa, a 3800 metros de altitude. O minúsculo distrito tem dois pequenos hotéis e alguns casebres. O movimento é dado exclusivamente por turistas.

Equipados com bastão de apoio, demos início à caminhada. O dia estava cinza, um vento frio soprava e ao fundo se via o pico Salcantay, todo coberto de neve e cercado de nuvens esparsas. Nosso objetivo estava encoberto pelas nuvens e havia um prenúncio  de chuva. O silêncio era quebrado apenas por nossos passos e pelo vento. O esplendor dos Andes se descortinava diante de nós. Os picos cobertos de neve e envoltos por nuvens, alguns fios d’ água oriundos do degelo, os vales e passagens que indicavam caminhos trilhados.

No meio da cordilheira, a escalada era um desafio. A primeira parte da trilha era pouco íngreme, mas o ritmo era lento. O terreno pedregoso e de terra solta. Era preciso cuidado para não escorregar e percebia-se a falta de ar. Tinha para mim que uma caminhada de pouco mais de um quilômetro seria fácil, mesmo em se tratando de uma subida. O cansaço era presente e a cada punhado de metros parava para respirar e buscar o fôlego. Não estava ofegante ou sufocado, mas tinha-se uma clara impressão de que o ar não atendia às necessidades corpóreas.

Comecei a contar os passos e numa das pausas, fui surpreendido: “caballito?”, indagou uma senhora que seguia nosso grupo. Os turistas eram acompanhados por locais que subiam com cavalos prontos para carregar qualquer um que estivesse disposto a pagar. Recusei e segui. Novamente, vinha a tentação: caballito, caballito. Agradeci, mas neguei. Estava determinado a chegar ao final da caminhada sem desistir. Não estava fácil, mas insisti. Minha filha ficou preocupada achando que eu iria enfartar, mas segui o ritmo.

Perto do final, uma senhora que iniciava a descida me incentivou: si se puede! A frase era conhecida por mim, slogan cantado em jogos de futebol das seleções andinas. Sorri e respondi com a mesma frase. Estava próximo o fim. A parte final era muito mais íngreme, mas foi superada lentamente, com passos curtos e constantes. É preciso respeitar a montanha. Antes de chegar na Laguna, avistei uma pequena tenda de madeira coberta de lona, onde eram vendidos espetinhos de frango, assemelhando-se aos vendedores de sanduíche de pernil na porta do estádio do Morumbi.

Mais alguns passos e cheguei ao destino. Sentei-me numa pedra e contemplei toda aquela beleza em diversos tons de cinza. A laguna tinha a água esverdeada e formara-se com o degelo da neve do pico Humantay. As nuvens estavam baixas e cobriam o cume. O vento frio trazia junto uma garoa gelada, mas a beleza da natureza crua era encantadora. Fiquei ali por alguns minutos, recuperando o ar e apenas contemplando as montanhas, enquanto os turistas se preocupavam em tirar fotos, fazer poses e registrar os melhores ângulos para postar em redes sociais.

 A jornada de regresso era mais tranquila, menos exigente, mas necessitava cuidado, pois as pedras soltas podiam levar a escorregões. A vista era incrível e o hotel em Soraypampa mais parecia uma pequena maquete. Na parte final da trilha, avistavam-se o cavalos que já retornavam para o merecido descanso. O ar não nos faltou no caminho de retorno e concluímos o trajeto sem intercorrências.

Subimos na van esfomeados e prontos para o almoço. Éramos dezenove pessoas e Fredy nos disse que foi a primeira vez nesta temporada que ninguém havia precisado de apoio de um cavalo para subir ou descer. O grupo fora guerreiro. A van partiu e poucos minutos depois comecei a suar frio, senti tontura e a vista ficou embaçada. Chamei o guia e alertei-o que iria desmaiar. Rapidamente fui socorrido e posto no oxigênio. Respirei fundo o ar puro por dois minutos e logo tudo voltou ao normal. Não desmaiei, mas descobri que o oxigênio que fora trazido na van era para mim.

A viagem de volta pareceu mais longa, pois nosso motorista dirigia em ritmo lento. Foi uma ótima oportunidade para conversar com meus colegas espanhóis e que já tinham feito outras quatro trilhas no Peru em duas semanas. Eram praticamente trekers profissionais. Aproveitei para apreciar a estrada e a paisagem de pequenas propriedades cultivadas no vale que passava por Limatambo e Anta, antes de chegar em Cuzco.

O sol já havia se posto quando chegamos na Plaza Regocijo. Cansados, mas acometidos de uma alegria perene fruto da bela jornada no meio da Cordilheira dos Andes.


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Conto: Na borda da piscina

 



Na borda da piscina


Deu um longo impulso por debaixo d´água, esticou os braços e as pontas dos pés, abaixou a cabeça para diminuir a resistência ao máximo e deslizar rente ao fundo da piscina. A água abraçava-lhe o corpo por inteiro, num gostoso sentimento de ternura. Bolhas de ar rompiam a superfície plácida da piscina e ela deslizava como uma arraia discreta e bela de gestos lentos e coreografados. Surgiu do outro lado, a água escorrendo pelo rosto, os longos cabelos jogados para trás. Abriu os olhos e apoiou-se na borda da piscina buscando a toalha para secar a mão que buscava o celular. Tirou uma e outra foto fazendo careta, cortando metade do rosto, tentando captar a luz nas margens da piscina deixando as gotículas agirem como pequenos prismas. O sorriso discreto era de uma menina que se divertia, apesar da idade cronológica negar tal aparência.

Ficou séria e tirou uma foto de apenas metade do rosto. A composição era proposital. Queria apenas um fragmento, um recorte, um pedaço de como ela se via. Era para ser algo conceitual, pensou. Reparou nos fios brancos que se infiltravam na bela cabeleira como impostores indevidos. Lembrou de como ele dizia aqueles fios brancos traziam-lhe um charme maduro e que ela de cabelo molhado e de cara limpa sem maquiagem era a mulher mais bonita que conhecera. Beleza pura, sem filtros, ele falava. E ela, descrente do elogio sentia o coração aquecido e um enrubescido.

Ele tinha estas pílulas de afeto. Lançava-as como flechas, em doses homeopáticas, mas eram habituais e generosas. Ela gostava e se encantava com estes detalhes. Depois de um encontro, vinha alguma mensagem mencionando algum detalhe que havia passado despercebido para ela. A cor do esmalte que combinava com a blusa, os sapatos mocassim que pareciam tão confortáveis, os óculos novos que destacavam ainda mais os belos olhos castanhos. Sempre havia uma mensagem, sempre havia um gesto de atenção. Sim, atenção aos detalhes. Ele era muito observador, discreto não parecia que observava com tanto afinco. Era como se ela fosse seu objeto de estudo e análise. Fazia anotações em seu caderninho mental e depois destilava-as em suas gotas de afeto. Sempre gentil, sempre atencioso.

Ela gostava de ser mimada e paparicada, mas havia algo que lhe incomodava. Olhou para o céu azul, fechou os olhos e deixou o sol banhar-lhe o rosto, que se iluminou. Ela só queria que ele tomasse uma decisão. Simples assim, mas nem tudo é simples como parece.


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Conto: Todo dia

 


foto: Renato Bueloni Ferreira



TODO DIA

Todo dia ela faz tudo sempre igual, seguindo a rotina cotidiana cantada por Chico Buarque. Entrou no elevador e atraída pela força magnética do enorme espelho no fundo daquela caixa metálica, pegou o celular na bolsa, arrumou o cabelo e ajustou o enquadramento para tirar mais uma fotografia. E depois outra e mais outra, afinal, uma foto apenas não é suficiente, pois é preciso escolher a melhor para postar nas redes sociais.

 

Todos os dias fazia o mesmo registro pela manhã ao sair de casa. Um registro diário que documentava o passar dos dias, das semanas, das estações e dos anos. As fotos sempre parecidas. As poses semelhantes. O sorriso contido e discreto, o rosto um pouco encoberto pelo aparelho celular era proposital. Queria dar um ar misterioso, fazer um charme com aqueles registros. Se montasse uma sequência em forma de filme, teria um documentário do envelhecimento sorrateiro e imperceptível.

 

Naquela manhã, parou diante do espelho e ficou a contemplar o que via. Não tirou a foto. Esqueceu de apertar o botão do térreo. Paralisada, mergulhou no espelho como se adentrasse um portal. Uma janela se descortinava diante dela e tudo ganhara novas cores. Notou as raízes brancas que surgiam e lembrou-se do comentário feito por um amigo um dia antes. Ele disse que era charmoso e lhe deixava ainda mais bonita. Achou graça, mas não gostou. Precisava marcar cabelereiro e pintar aqueles fios brancos. Mas de repente, viu-se arrebatada por uma sensação física de passagem do tempo. Não eram dores e nem sinais externos. Ela não tinha rugas aparentes e nem marcas na face, mas o espelho penetrava no seu coração e ela viu-se envelhecida, cansada, exaurida por uma rotina que lhe ditava os caminhos. Percebeu que deixara de ser protagonista de seus dias e passara a ser mera passageira, conduzida pela correnteza deste rio que chamamos de vida.

 

Quantos anos ela deixar passar sem que tomasse as rédeas de sua vida? Quanto tempo deixara transcorrer? Tentou se lembrar da última viagem que fizera por decisão própria. Iam-se lá uns dois ou três anos, pois nos períodos recentes, acompanhou amigas em viagens curtas, não definindo roteiros ou passeios. Ia a tiracolo, como mera acompanhante, sem voz ativa. Quando foi que ela se deixou apagar assim? Sentiu um vazio interior a lhe consumir, um aperto no coração e foi tomada de um senso de urgência, uma vontade que lhe ardia por dentro e de repente deixou sua face ruborizada. A chama estava viva dentro dela, apenas adormecida. Sorriu cheia de energia e apertou o botão do térreo com determinação renovada. Hoje seria o primeiro dia de algo novo. 



quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Trechos: Vá aonde seu coração mandar, Susanna Tamaro

 



Trechos de livros

 “O Acaso. Certa vez, o marido da senhora Morpurgo me contou que em hebraico essa palavra não existe. Para indicarem qualquer coisa relativa à casualidade, precisavam recorrer à palavra azar, que é árabe. Engraçado, não acha? Engraçado, mas também tranquilizador: onde há Deus, não há lugar para o acaso, nem mesmo para o humilde vocábulo que o representa. Tudo é ordenado, regulado de cima, tudo quanto nos aconteça acontecerá porque tem um sentido. Sempre tive muita inveja daqueles que aceitam essa visão de mundo sem hesitação, por sua leveza. No que me diz respeito, e com as melhores intenções da minha parte, jamais consegui fazê-la minha por mais de dois dias seguidos. Diante do horror, diante da injustiça, sempre voltei atrás; em vez de justificá-los com gratidão, sempre surgiu em mim um incontido sentido de revolta.”

(Vá aonde seu coração mandar. Susanna Tamaro, trad. Mario Fondelli, Rio de Janeiro : Versus, 2023, p.59-60)


Com o passar dos anos, o acaso se tornou um companheiro decifrável, uma peça do quebra cabeça da vida que se encaixa e faz sentido. Tantas pessoas cruzam nossos caminhos e poucas ficam, permanecem com sua presença indelével e indispensável. Por quê?

São estas pessoas que nos ajudam a ser quem somos, ajudam na jornada, acompanham na caminhada da vida, moldam-nos com seus exemplos, defeitos e virtudes, fazem-nos sorrir e acolhem-nos em seus braços nos momentos de dor e tristeza. 

Bendito seja o acaso! E por trás do acaso, há Alguém a zelar por nós todos.


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Conto: Um dedo de prosa

 

foto: Renato Bueloni Ferreira


Um dedo de prosa


Têm dias que eu apenas queria alguém para conversar, tomar um café no final do dia e perguntar: qual livro você está lendo?

E então deixar-me-ia inebriar pela doçura da tua voz narrando alguma estória interessante, ou mesmo que não seja interessante, iria me pendurar com atenção em cada detalhe narrativo, em cada pausa e suspiro da tua voz, reparando no movimento dos teus lábios delicados e finos, atraído pelo olhar fixo no meu. Não te interromperia. Apenas, deixaria que me contasse o que quisesse do livro, que falasse e falasse e falasse.

Nunca te contei, mas quando estou estressado ou sentindo aquele vazio que bate por vezes em dias corridos, ouço algum áudio teu que deixo guardado no whatsapp, somente para ouvir tua voz. Já tentei imitá-la e no silêncio, consigo te imaginar falando, sorrindo. Cada trejeito do rosto completa a fala suave que me abraça com todo afeto. Curioso pensar que o jeito de falar pode abraçar, pode acalmar, pode adentrar no fundo do coração e desenhar um sorriso, terno, sincero, delicado. Parece que estes abraços alternativos têm me cativado mais do que os abraços reais, vazios, protocolares.

Outro dia, entregue a uma sessão de massagem para tentar destravar as dores na lombar e no ombro, fui surpreendido pelo firme segurar da minha mão. Dedos longos e finos, entrelaçados com os meus, e de repente, senti um arrepio percorrer minha coluna. Não queria soltar da mão da massagista que me atendia. Ela percebeu que ao segurar minha mão, havia um grito silencioso contido dentro de mim. Queria este pequeno gesto de afeto, mas não sabia que dele precisava. Ela apoiou a outra mão espalmada sobre minha coluna, como se fizesse uma ligação direta para dar a partida num carro ou provocar um curto circuito. Senti um arrepio mais forte, talvez algo produzido apenas na minha imaginação, mas aquela aparência de energia me deixou pensativo, instigado. Aquela jovem que me atendeu no spa estava inteiramente atenta às minhas necessidades naquele momento e ela, ao segurar minha mão, abraçou-me de forma figurativa. Queria congelar o tempo, parar o relógio, prorrogar aquela tarde. Queria fazer a sensação de preenchimento do vazio perdurar para sempre.

Tua voz tem este mesmo poder mágico. Acolhe. Abraça. Energiza. Talvez hoje esteja enquadrado como perfeito aquariano, mergulhado em devaneios e ideias sem sentido. Para mim, porém, há muito sentido. Quando descubro estas coisas banais, que estão ali pipocando no cotidiano, meu dia ganha novo sabor e cor. É como colocar novos óculos para ver a realidade e tudo se transforma, ganha relevo, profundidade, altura. Acho que você nunca desconfiaria que sua voz seria um bálsamo tão penetrante e com efeitos medicinais para minha alma. Pois é, tens um poder oculto que descobri, mas que guardo a sete chaves. Estou sendo muito egoísta em privar a humanidade desta maravilha que cura? Ou seria este remédio aplicável somente a aquarianos bobos e deslumbrados que se conectam na exata frequência da tua voz?

Não sei a resposta. Sei apenas que gosto de te ouvir, gosto de estar com você, gosto de aprender contigo. Adoro jogar fora um dedo de prosa contigo. O mundo é um lugar muito melhor com você. Que sorte a minha!

 


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Conto: Rabiscos mentais

 


Conto: Rabiscos mentais


Talvez eu goste de você mais do que deveria. Talvez nem deveria ter deixado me interessar por você, deveria ter me apegado a defeitos, a detalhes negativos, àqueles pontos que incomodam e desfazem qualquer encanto.

Acho que o cigarro era para ser um destes eventos para torcer o nariz. Lembro que você me disse que fumava com certo temor da minha reação, como se eu fosse torcer o nariz e fazer cara feia. Mas ouviu de mim que eu também fumei e gostava de fumar. Contive-me, mas quase emendei um “acho sexy fumar”. Engoli as palavras e calei-me. Naquele dia, após o almoço, enquanto caminhávamos pela rua, você acendeu um cigarro e eu fiquei apenas a observar. Enquanto te ouvia, minha imaginação viajava para um recanto distante, só nós dois a fumar e a brincar com as piruetas da fumaça do cigarro. Entrei numa realidade paralela somente perceptível a mim. Acho que fui discreto o suficiente para que não percebesses o que se passava nos recantos da mente.

Tentei fazer uma lista mental de pontos negativos, mas todos os quesitos eram positivos. Custei a achar algo que me incomodasse. Terminei com um conjunto vazio.  Acho que o sentimento turva o raciocínio, desfoca, neblina que cai espessa e impede a visibilidade clara. O coração parece saber navegar, mesmo com neblina intensa e sem qualquer visibilidade. Segue seguro e firme, ainda que por vezes pareça hesitar, sempre adiante, derrubando as barreiras e justificando cada atitude.

Havia leveza e alegria no ar e tudo causado pelo teu sorriso. Em tempos que se fala tanto em energia e conexão, parece que tudo se encaixou e a energia gerada era carbono free. Estávamos prontos para encarar a era das novas fontes energéticas? Brincadeiras a parte, o caminho ainda se revelaria longo e cheio de percalços, se é que existe caminho a trilhar. Caminhar sozinho pode ser tortuoso e queria que a jornada não fosse solitária.

 



segunda-feira, 26 de maio de 2025

Conto: Quanto tempo?

 


Quanto tempo?


Ela tomou um longo e solene gole do café, num gesto quase ritualístico, e perguntou sem olhar nos olhos de seu amigo:

- Já imaginou se soubéssemos quanto tempo de vida ainda nos resta?

- Já, mas não me importo muito com isso. O fim chegará para todos e para cada um de nós no seu devido momento. – respondeu sem cerimônia, sem preocupação, sem esposar qualquer sentimento.

 Um resposta fria e objetiva que a deixou meio sem rumo para avançar no tema.

Ele sorriu e olhou para ela.

- Você tem medo que o futuro nos reserva?

- Não tenho medo do que o futuro nos reserva, mas se soubesse quando fosse morrer, talvez usaria meu tempo de forma diferente. Acho que daria mais valor ao tempo. Por exemplo, e se lhe restassem apenas doze horas de vida, o que faria agora?

Ele engoliu o café, olhou-a com um leve sorriso e disse:

- Eu te beijaria e prolongaria o beijo até que meu tempo expirasse.


quinta-feira, 27 de março de 2025

Inspiração e exemplo

 

Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro - @rbueloni


Adentramos o mês de março e é impossível não lembrar do início da pandemia. Lá se vão 5 anos desde que fomos obrigados a manter o distanciamento social, ficamos trancados em casa, fomos impedidos de viajar e explorar o mundo. A vida se reduziu a espaços limitados. Todo ano relembro do início da pandemia e do mundo distópico que se materializou diante de nossos olhos. Muitos sucumbiram. Outros ignoraram. Outros ainda – acho que a maioria – saíram mais fortes, mais conscientes da nossa fragilidade, mais gratos pela vida.

 

Neste início de ano percebi um outro dado que tem me levado a uma reflexão mais profunda e a uma mudança de atitude. Percebi que a distância temporal entre a virada do século e o tempo provável que me resta de vida são equidistantes. 25 anos transcorreram desde o início do século e do bug do milênio (aquela catástrofe que não se concretizou) até o dia de hoje. E somando 25 anos à minha idade, provavelmente em 2050 estarei próximo da minha finitude. Isto me incomoda? Isto me assusta? Nem um pouco, apenas me fez refletir. O tempo é fugaz e há certas coisas que não vale a pena postergar, há certas atitudes que preciso mudar e há certos momentos em que não devo me calar, não devo deixar para depois, pois talvez não  haja um depois.

 

Se tudo parece-lhe confuso, calma que vou tentar me explicar e unir os dois parágrafos acima.

 

A pandemia deixou suas marcas e mudou alguns hábitos. O trabalho remoto passou a ser algo usual, a preocupação com a saúde deixou de ser algo a ser adiado, novas tecnologias foram incorporadas e as pessoas foram tomadas por um desejo constante de viajar e explorar e descobrir novos lugares. O dinheiro passou a ser utilizado de forma mais desapegada. Guardar para sempre? Não, gastemos um pouco, pois não se sabe quanto tempo teremos até a próxima pandemia.

 

O fato é que alguns dos nossos hábitos mudaram. O nosso mindset – para usar um termo moderninho – mudou. Tenho viajado muito mais. Prefiro viajar e adiar a troca de um veículo. Fiz um check up e confirmei o que já suspeitava: tenho pressão alta e o colesterol também. Vou começar a usar medicamento de uso contínuo. Sinal da idade. Passei a fazer caminhadas 3 vezes por semana e agora vou iniciar treinos de força, ou a boa e velha academia. Estudos demonstram que estes treinos ajudam a preservar a memória, além de garantir um envelhecimento de qualidade.

 

E o que isso tem a ver com inspiração e exemplo e pandemia e novos hábitos?

 

Dizem que as palavras movem e o exemplo arrasta. O exemplo arrasta e inspira novos hábitos. Muitas vezes estes novos hábitos são introduzidos por inspiração de pessoas que nos cercam. Algum amigo que faz exercício e te convida para ir à academia, por exemplo. Ou aquela amiga que posta todo dia um treino na academia. Estes exemplos me motivaram a começar com as caminhadas matinais. E ao invés de apenas seguir o exemplo, resolvi agradecer e contar para estas pessoas que o exemplo delas me motivou.

 

Enquanto pensava neste texto, lembrei-me de um exercício que fiz de escrita criativa numa oficina da Terapia da Palavra. A proposta do exercício era escrever uma carta para um chefe, um familiar, alguma pessoa que tenha sido importante influência em nossas vidas. Resolvi escrever a carta para meu primeiro chefe, Dr. Luiz Vergueiro, com quem aprendi muito sobre o trabalho do advogado e a postura profissional. Achei que ia ser difícil escrever, mas percebi que ao me debruçar sobre aqueles anos iniciais de estágio, muitos detalhes vieram à mente. A carta nunca foi enviada, mas sugeriram-me que a enviasse. Percebi como fui inspirado pelo exemplo e como aprendi com aquele sócio de um grande escritório de São Paulo.

 

E novas inspirações têm vindo neste começo de ano. Quem sabe planejar um período sabático em algum país distante? Quem sabe virar um nômade digital e perambular por países do leste europeu? Até brinquei com uma amiga que quero ser igual a ela quando crescer...ou melhor, quando envelhecer.

 

A mudança deste começo de ano foi que comecei a falar mais, a agradecer as pessoas, a compartilhar estas inspirações, a elogiar condutas. Parei de calar e passei a falar, ainda que possa parecer besteira ou que seja um elogio banal e corriqueiro, ainda que seja uma aparente coincidência ou fruto do acaso. Você nunca sabe quando um elogio ou uma palavra amiga pode mudar o dia – e quiçá a vida – e o ânimo de uma pessoa. Por que não olhar ao redor, observar e deixar-se levar por bons exemplos? O tempo é curto. A vida é curta. Sejamos pessoas que semeiam sorrisos e esperança. Afinal, a esperança caminha de mãos dadas com a alegria. 


sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Poesia: Poente laranja

 

foto Renato Bueloni Ferreira



POENTE LARANJA


a moça de olhos oceânicos e profundos

camuflados em cabelos revoltos

debruçada na varanda, exalava charme

o poente a hipnotizava, todos os dias

o vento vinha lhe beijar a boca

o céu alaranjado vinha lhe acariciar a face

a luz do final de tarde lhe acalentava a alma

antes de mergulhar no escuro da noite

e esperar um novo renascer.