quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Crônicas peruanas - Laguna Humantay

 

Laguna Humantay - @rbueloni



Cuzco,  22 de agosto de 2025

 

O despertador tocou alguns minutos depois das quatro da manhã. Era o último passeio que havíamos programado e talvez o mais exigente. Estava um pouco apreensivo, a começar pelo horário de acordar, mas resolvi juntar-me a minha filha e amiga na excursão até a Laguna Humantay.

O lobby do hotel estava escuro e havia apenas duas pessoas na recepção. O pátio central em estilo colonial espanhol trazia um ar medieval com a pouca luminosidade e a decoração que ressaltava a arte cusquenha. O atendente perguntou se havíamos pedido o café da manhã antecipado, mas esquecera de solicitar. É comum fornecerem um lanche para viagem, pois muitos passeios saem bem cedo, com o dia ainda escuro.

Pouco antes das cinco, a van de transporte chegou e o porteiro abriu a pesada porta de madeira. Brinquei com ele sobre ser o porteiro do castelo. Ele sorriu revelando o bom humor apesar da hora. Explicou-me que não fabricam mais portas de madeira maciça e com detalhes em metal. Hoje, tudo é mais leve e simples, disse-me.

Juntamo-nos ao grupo de turistas no veículo quase cheio. Logo em seguida, uma parada na Plaza de Armas, antigo centro do império Inca e ponto de encontro para os inúmeros passeios que partem de Cuzco. Algumas pessoas a mais entraram na van, que partiu lotada. Nosso guia, Fredy, deu instruções sobre o trajeto e o que iríamos encontrar. Alertou que havia oxigênio caso alguém necessitasse, afinal, a Laguna Humantay ficava a 4200 metros de altitude, ou seja, 800 metros a  mais do que Cuzco. Pensei comigo que isso seria desnecessário, pois já estava aclimatado à altitude. Fredy sugeriu que dormíssemos por duas horas antes da parada para o café da manhã. A van seguiu pela estrada sinuosa, deixando Cuzco para trás e percorrendo uma região de vale cultivado. Logo peguei no sono.

A parada para o café da manhã foi em Mollepata, um pequeno povoado e início de uma estrada de terra que nos levaria até a base da subida para a Laguna Humantay. O nosso grupo era composto por mexicanos, espanhóis e colombianos. Éramos os únicos brasileiros, o que deu um ar de comunidade latina muito divertida. Seguimos por uma hora por uma estrada de terra até o ponto de início de nossa subida, em Soraypampa, a 3800 metros de altitude. O minúsculo distrito tem dois pequenos hotéis e alguns casebres. O movimento é dado exclusivamente por turistas.

Equipados com bastão de apoio, demos início à caminhada. O dia estava cinza, um vento frio soprava e ao fundo se via o pico Salcantay, todo coberto de neve e cercado de nuvens esparsas. Nosso objetivo estava encoberto pelas nuvens e havia um prenúncio  de chuva. O silêncio era quebrado apenas por nossos passos e pelo vento. O esplendor dos Andes se descortinava diante de nós. Os picos cobertos de neve e envoltos por nuvens, alguns fios d’ água oriundos do degelo, os vales e passagens que indicavam caminhos trilhados.

No meio da cordilheira, a escalada era um desafio. A primeira parte da trilha era pouco íngreme, mas o ritmo era lento. O terreno pedregoso e de terra solta. Era preciso cuidado para não escorregar e percebia-se a falta de ar. Tinha para mim que uma caminhada de pouco mais de um quilômetro seria fácil, mesmo em se tratando de uma subida. O cansaço era presente e a cada punhado de metros parava para respirar e buscar o fôlego. Não estava ofegante ou sufocado, mas tinha-se uma clara impressão de que o ar não atendia às necessidades corpóreas.

Comecei a contar os passos e numa das pausas, fui surpreendido: “caballito?”, indagou uma senhora que seguia nosso grupo. Os turistas eram acompanhados por locais que subiam com cavalos prontos para carregar qualquer um que estivesse disposto a pagar. Recusei e segui. Novamente, vinha a tentação: caballito, caballito. Agradeci, mas neguei. Estava determinado a chegar ao final da caminhada sem desistir. Não estava fácil, mas insisti. Minha filha ficou preocupada achando que eu iria enfartar, mas segui o ritmo.

Perto do final, uma senhora que iniciava a descida me incentivou: si se puede! A frase era conhecida por mim, slogan cantado em jogos de futebol das seleções andinas. Sorri e respondi com a mesma frase. Estava próximo o fim. A parte final era muito mais íngreme, mas foi superada lentamente, com passos curtos e constantes. É preciso respeitar a montanha. Antes de chegar na Laguna, avistei uma pequena tenda de madeira coberta de lona, onde eram vendidos espetinhos de frango, assemelhando-se aos vendedores de sanduíche de pernil na porta do estádio do Morumbi.

Mais alguns passos e cheguei ao destino. Sentei-me numa pedra e contemplei toda aquela beleza em diversos tons de cinza. A laguna tinha a água esverdeada e formara-se com o degelo da neve do pico Humantay. As nuvens estavam baixas e cobriam o cume. O vento frio trazia junto uma garoa gelada, mas a beleza da natureza crua era encantadora. Fiquei ali por alguns minutos, recuperando o ar e apenas contemplando as montanhas, enquanto os turistas se preocupavam em tirar fotos, fazer poses e registrar os melhores ângulos para postar em redes sociais.

 A jornada de regresso era mais tranquila, menos exigente, mas necessitava cuidado, pois as pedras soltas podiam levar a escorregões. A vista era incrível e o hotel em Soraypampa mais parecia uma pequena maquete. Na parte final da trilha, avistavam-se o cavalos que já retornavam para o merecido descanso. O ar não nos faltou no caminho de retorno e concluímos o trajeto sem intercorrências.

Subimos na van esfomeados e prontos para o almoço. Éramos dezenove pessoas e Fredy nos disse que foi a primeira vez nesta temporada que ninguém havia precisado de apoio de um cavalo para subir ou descer. O grupo fora guerreiro. A van partiu e poucos minutos depois comecei a suar frio, senti tontura e a vista ficou embaçada. Chamei o guia e alertei-o que iria desmaiar. Rapidamente fui socorrido e posto no oxigênio. Respirei fundo o ar puro por dois minutos e logo tudo voltou ao normal. Não desmaiei, mas descobri que o oxigênio que fora trazido na van era para mim.

A viagem de volta pareceu mais longa, pois nosso motorista dirigia em ritmo lento. Foi uma ótima oportunidade para conversar com meus colegas espanhóis e que já tinham feito outras quatro trilhas no Peru em duas semanas. Eram praticamente trekers profissionais. Aproveitei para apreciar a estrada e a paisagem de pequenas propriedades cultivadas no vale que passava por Limatambo e Anta, antes de chegar em Cuzco.

O sol já havia se posto quando chegamos na Plaza Regocijo. Cansados, mas acometidos de uma alegria perene fruto da bela jornada no meio da Cordilheira dos Andes.


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