"O visitante comeu um biscoito de polvilho e de repente fez a pergunta, Alguma das minhas personangens teria por acaso voltado a me procurar pedindo mais tempo e mais espaço? Fiquei olhando para o prato de biscoitos, Ah! duas ou três já tinham voltado sem disfarces para exigir, Quero mais uma chance porque eu não disse e não fiz nem a metade do que devia fazer! Rosa Ambrósio, atriz decadente e alcoólatra, me apareceu ainda outra tarde, eu me sentei numa mesinha na calçada enquanto tomava sorvete e fiquei vendo aquela gente passar ali defronte. Ela aboletou-se ao meu lado e com sua voz pastosa criticou os passantes, jovens, crianças e velhos que iam desfilando na tarde calorente: Gente visível demais, gente tão solicitante, olha meu cabelo! olha meu sapato! olha o meu rabo! E pode acontecer que às vezes a gente não tem vontade de ver rabo nenhum, ela disse e me puxou pela manga, Então, não vai mais me chamar?...(...)"
(Lygia Fagundes Telles. A Conspiração de Nuvens. Rio de Janeiro : Rocco, 2007, p. 99)
Quando li a crônica intitulada O Visitante, cujo trecho foi transcrito acima, estranhei. Como poderia um personagem voltar e pedir mais tempo ao seu criador? Se há necessidade de mais tempo, então não estaria mal contada a estória? Não seria deficiente a narrativa? Seria o caso de reescrever o que foi escrito?
A dúvida permaneceu e fiquei intrigado, curioso sobre o processo criativo e a forma como o escritor dá "vida" às suas personangens. A narrativa de Lygia Fagundes Telles marcou-me, ficou gravada num cantinho da memória como um daqueles textos de formação inesquecíveis, como se a esperar um momento preciso para se revelar com clareza e genialidade. Confesso que continuei cético sobre o aparente delírio da escritora, até que outro dia, fez-se a luz.
Escrevi uma crônica em junho deste ano cujo título é Viagem. Inicialmente, pensava em escrever um conto, algo mais longo e o que foi publicado seria a primeira parte. Ele não tinha nome, não tinha rosto, não tinha nada além de dor e sentimentos.
O fato é que ele me chamou e pediu mais tempo, queria contar sua estória, queria falar-me, queria que eu viajasse com ele e o acompanhasse na viagem. Seria seu porta-voz, seu confidente, seu fiel escudeiro. E assim, a narrativa foi sendo chocada e ganhou corpo. Esta narrativa foi adubada por um desafio e aos poucos, Pedro, este o seu nome, vai me contando sua estória.
E a estória de Pedro vai preenchendo páginas e páginas que quiçá formarão um belo livro. Lygia Fagundes Telles tem razão quando nos ensina que as personagens têm vida própria.
Um comentário:
Alice, aqui do Rio, diz Amém. :)
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