terça-feira, 29 de junho de 2010

Crônica: Viagem


VIAGEM


As duas malas grandes repousavam no hall do elevador como dois cães amestrados aguardando o dono. Ele voltou para dentro do apartamento, conferiu se as janelas estavam fechadas, os aparelhos eletrônicos desligados da tomada. Parou diante de um porta-retrato numa mesinha no canto da sala. O olhar fixou-se na foto. Sentiu um arrepio, o coração apertado. O tempo parecia congelar, o ruído da rua silenciou-se.


Pegou o porta-retrato com as mãos trêmulas. Duas lágrimas escorreram-lhe pelo rosto regando a barba levemente grisalha. Esboçou um sorriso aflito. “Por que ela tinha ido?”, perguntou-se.

A foto trazia duas pessoas sorrindo, vibrantes, celebrando a vida num momento único, repleto de sentido profundo, de algo intangível, mas dotado de uma força inexplicável. Ele nunca conseguiu entender o que aconteceu entre eles. Ela um pouco mais jovem; ele maduro, mas bem apessoado. Nunca foi capaz de descrever o que sentia. Tentou repetidas vezes conversar com seu terapeuta sobre ela, mas entrava em transe, tomado por um estado de espírito que o inebriava a ponto de impedir que o sentimento fosse descrito de forma clara e lógica, afinal sentimentos não são lógicos, argumentava ele. O aspecto físico era relegado a um segundo plano, pois sentia uma forte atração que superava apenas sua beleza e charme.

Desde que a conheceu, cicatrizes foram fechadas e curadas. Chegou a afirmar que conhecia o amor pela primeira vez na vida, depois dos 40 anos. Esquecera das traições, das mágoas, da solidão, da vergonha. Perdera o medo de falar, de olhar, de sorrir e de presentear. Seu mundo passara a ser nutrido por ela. Falavam-se todos os dias e viam-se em quase todos os finais de semana. Sempre que possível, encontrava uma forma de fugir para a cidade dela e retardava a volta para ali permanecer. Bastava-lhe estar com ela, conversar com ela. Tudo caminhava bem, até que um dia...

As lágrimas ficaram mais volumosas. A dor da lembrança da morte não havia sido superada. O corpo inerte, a tez pálida e fria sem viço, os olhos cerrados levaram para sempre um brilho que incendiava sua alma, o cabelo penteado, as mãos cruzadas com um anel que ele a presenteara.

Recolocou o porta-retrato na mesinha de canto. Estava com a barba por fazer, algumas rugas a mais e feridas reabertas. Foram dois anos e quatro meses. Ele contabilizava o tempo como uma fortuna que tratava com zelo e depositava diariamente no cofre. Cada dia, cada palavra, cada sorriso representava juros e rendimentos. Ela lhe proporcionara tudo. Ela se fora. Sentia uma necessidade de reviver o primeiro encontro, de reavivar a memória e sepultá-la de forma definitiva.


Fechou a porta do apartamento, abriu a porta do elevador, pegou as malas e partiu para o aeroporto.

Um comentário:

Isadora disse...

Nossa Renato acabei de ler com o coração na mão e os olhos cheios de lágrimas.
Uma parte linda do texto, onde você escreve que ele contabilizava os dias e guardava sorrisos entre outras coisas como se fosse um banco que gera juros e rendimentos.
Você escreve muiot bem. Parabéns.
Um beijo