A semana começou de forma estranha, um clima de apreensão no
ar, uma expectativa que se confundia com ansiedade, as escolas e universidades
tiveram suas aulas suspensas, o trânsito ficou mais leve, o fluxo de pessoas na
São Paulo acelerada diminuiu, o rodízio foi suspenso, o som da cidade mudou.
Sempre dei muita atenção para o som da cidade, seus ruídos, sua sinfonia
urbana. Noto as mais sutis mudanças, deixo-me encantar pelos sons de pássaros,
pela algazarra das maritacas no final de tarde. Caminhávamos tateando cada
passo e no aguardo de uma diretriz, um grito de liderança que se mostraria mais
tarde polifônico, dissonante.
Na quinta-feira, dia 19 de março, dia de São José, fui ao
escritório pela manhã seguindo a rotina diária. Peguei o jornal e fui tomar
café. Perguntei para a atendente sobre o movimento na loja e ela respondeu que
havia caído e que amanhã fechariam, sem previsão para reabertura. O estado de
emergência estava instalado pelo prefeito, pelo governador e pelo presidente da
república. Tomei o café, li o jornal sem pressa e despedi-me da atendente
desejando que se cuidasse.
Ao sair na rua, o céu estava cinza claro, nuvens baixas que
se assemelhavam a uma bruma, um calor abafado e a ausência de carros e motos na
rua era notável às nove da manhã. Ouvi então um barulho que vinha do alto e
parecia de uma aeronave. Na hora, fui teletransportado para a Londres de 1940 e
imaginei que veria no céu um avião da Luftwaffe prestes a lançar sua carga de
bombas sobre a capital do império britânico. A palavra guerra, tão usada pelos
nossos governantes, instalou-se no meu subconsciente e a imagem me deixou
desnorteado. Olhei para o alto e passou um helicóptero. Segui meu rumo com serenidade, mas o
clima era de tristeza e medo. Algo de estranho pairava no ar.
O dia transcorreu sem que o telefone tocasse. As páginas de
notícias de jornais, as estações de rádio só tratavam do coronavírus. A
pandemia já estava entre nós e era preciso ficar em casa. O tempo todo e todo
mundo. São Paulo seria o epicentro da contaminação, a cidade mais cosmopolita
do Brasil.
O vírus microscópico não deixa estragos na paisagem, como
uma tempestade, um vendaval, um furacão, um terremoto. O vírus é silencioso.
Esta forma de agir é que deixa tudo estranho e confuso. Os dias de quarentena
serão sábados – ou domingos ou feriados – que se repetirão sem data para
terminar. Ficar em casa nos impedirá de experimentar a cidade fantasma em que
São Paulo se transformará.
Naquela noite, as imagens de entrevistas coletivas revelavam
um futuro de colapso do sistema de saúde, de caos na economia, de cadáveres se
acumulando, de gente faminta, de ruas abandonadas e uma cidade paralisada. Traçaram um cenário apocalíptico. Seria
risível, exagerado e inverossímil se não houvesse notícias das mortes na
Itália, Espanha e os primeiros casos nos EUA.
Políticos cederam lugar a médicos infectologistas,
pneumologistas, secretários de saúde, ministro da saúde. O inimigo é invisível,
mas devastador, disseram de forma unânime. Lavem as mãos, usem álcool gel, não
saiam de casa. O mantra se repetia em todos os canais de televisão, rádios,
sites noticiosos na internet. Pessoas
esgotaram os estoques de álcool gel e máscaras cirúrgicas das farmácias e
supermercados. O papel higiênico virou item de primeira necessidade nos
estoques residenciais. Um medo
contido tomou conta da população, com exceção daqueles que acham que se trata
de uma gripezinha.
Não houve histeria ou pânico generalizado, mas uma aflição
coletiva. O abastecimento dos supermercados seguiu o ritmo normal. O mesmo se
dá nas farmácias e postos de gasolina. Os serviços essenciais seguem
funcionando, mas temos que ficar em casa. Alguns sentem mais o medo, ou melhor, alguns deixam-se tomar
pelo medo da incerteza, da ausência de horizonte. Quando isso tudo vai acabar?
Ninguém sabe, ninguém tem a resposta e a incerteza amedronta, paralisa,
tira-nos a racionalidade.
A invisibilidade do inimigo deveria nos deixar menos
aflitos, mas depois de uma semana inteira de quarentena, as pessoas estão com
as emoções à flor da pele. O medo corrói a coragem e nos drena. Precisamos de
forças para caminhar um passo por vez. Meu otimismo realista me leva a ter esperança e fé de que
vamos superar esta batalha.
Em momentos como este, manter a serenidade, o equilíbrio é
fundamental para a sanidade. Em tempos de pandemia, vale a pena desligar a
televisão. Não se trata de apontar o dedo para o ministro da saúde e acusá-lo
de atacar a imprensa. A imprensa faz o seu trabalho, mas o excesso de notícias
sobre a pandemia faz mal para a saúde mental. Respire, deixe-se respirar, não
se cobre tanto, como escreveu Mafê Probst. Pare de contar os casos, deixe o tempo correr e siga um dia
por vez. Teremos mais capítulos
pela frente.
A pandemia vai acabar e sairemos melhores e mais humanos
desta batalha invisível.