sexta-feira, 30 de novembro de 2018
Poesia: Despida
DESPIDA
abraçou-se
e diante do espelho,
no isolamento do quarto,
alma despida de máscaras e maquiagem
apenas brilhou linda.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
Conto: Um domingo qualquer
Dia branco, by @missuniversoproprio |
UM DOMINGO QUALQUER
O sol adentrava pela janela da sala, ainda tímido, naquela
manhã fria de final de inverno paulistano. Com uma xícara de café, daquelas
grandes, sentou-se na poltrona ao lado do sofá, esticando as belas pernas e
apoiando-as sobre a mesa de centro. Contemplava os raios que penetravam pela
janela, invadindo seu espaço privado. Segurou a xícara com as duas mãos,
aproveitando o calor da porcelana azul. Uma das cachorras aproximou-se e apoiou
a cabeça sobre sua coxa, pedindo um carinho matinal.
Bebericou o café, levantou-se, abriu a porta da varanda e
ficou a ouvir o ruído tranquilo e preguiçoso da manhã de domingo. Não havia
carros, ônibus, motos ou qualquer outro barulho de veículo motorizado, apenas uma leve
brisa a criar um rebuliço nas folhas das árvores da praça em frente. Alguns
poucos pássaros se agitavam entre as folhas e a cidade ganhava contornos de
cidade de interior, onde prevalecia apenas o cantar da natureza. Achou estranho
o silêncio, mas percebeu um certo reconforto, um acolhimento tranquilizador da
metrópole. Sentiu frio nos pés descalços e voltou a entrar.
A cada novo dia a esperança renasce no ser, no viver. Um
vestido plúmbeo de alça fina caiu-lhe bem. Era discreto o suficiente para não
chamar atenção, mas permitia realçar suas qualidades físicas, perceptíveis ao
olhar mais atento. Acendeu um cigarro e
deu uma longa tragada. Não era um vício, mas um prazer solitário que mantinha
desde os tempos de faculdade. Gostava de fumar e se divertia com as piruetas da
fumaça subindo da ponta do cigarro em brasa. Era um momento só dela, onde
vasculhava seu interior e refletia. Em tempos de exclusão de fumantes, sua casa
era um refúgio onde podia fumar sem reprimendas ou olhares tortos e condenatórios, onde podia
caminhar nua pelos cômodos sem olhares indiscretos de vizinhos, onde ouvia as
músicas que gostava e lhe davam energia para enfrentar cada dia.
Naquela manhã, não havia música no interior do apartamento,
apenas o silêncio. Quando estava compenetrada, sua beleza era mais notada. Os
olhos traziam consigo uma força inquebrável, não como um super-herói de filme
da Marvel em que um raio destruidor está prestes a brotar dos olhos da heroína,
mas se assemelhavam a de uma esfinge que nos convida a decifrá-la, se é que é
possível decifrar o pensamento e o âmago de uma mulher.
Apagou o cigarro, amarrou um lenço de seda no pescoço,
checou a bolsa, pegou o celular e hesitou. Estava na hora de ir, mas sentiu
medo. As mãos estavam geladas. Respirou fundo e deu um passo em direção à
porta. Não era possível mais adiar aquela conversa. A amiga não imaginava o
assunto, mas ela precisava falar e derramar sobre a mesa tudo que sabia.
Guardar para si o que tinha visto tornara-se sufocante, um peso impossível de
carregar. Precisava dar vazão a tudo que estava retido, mesmo que pudesse
custar a longa amizade. Abriu a porta e chamou o elevador.
Postado por
Renato
às
5:20 PM
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terça-feira, 7 de agosto de 2018
Conto: Fino traçado
Minimal is Good 8 by Raid71 |
CONTO: FINO TRAÇADO
As ondas abraçavam seus pés à beira-mar com delicadeza. Um
abraço mais frio do que o usual, afinal inverno no Rio de Janeiro traz consigo
águas marinhas mais frias, mas nada que lhe incomodasse. Seria muita pretensão
reclamar do inverno no Rio de Janeiro, se é que podemos chamar de inverno uma
época onde a temperatura baixa alguns poucos graus e o sol continua a brilhar
sem trégua.
O mar estava calmo e a praia semideserta naquele ponto do
Leme. Olhou para baixo e deixou-se hipnotizar pelo ritmo constante das ondas
calmas, que vinham, acariciavam sua pele, depois iam-se sem cansar. Perdeu-se
na contemplação do mar, algo que nunca lhe cansava. Eram mais de quarenta anos
morando naquela cidade de São Sebastião, abençoada por uma beleza natural
inigualável, à beira do oceano que lhe parecia infinito quando criança.
Marina nascera no Leme. Seus avós moravam em Copacabana.
Seus tios entre estes dois bairros. Vivia cercada de primos e família. A vida
era boa. Não havia do que reclamar. Veio a adolescência, a faculdade de
economia na PUC, o casamento com o Bernardo, o nascimento de Laura, a briga, as
discussões, a separação. Um roteiro tão previsível quanto tema de novela.
Nenhuma separação passa incólume. Deixa cicatrizes na pele, sulcos no coração, marcas
na alma.
Ficou de cócoras e passou a desenhar na areia com um dedo.
Um longo e fino traçado sinuoso logo era apagado pelas ondas. Seria tão bom,
pensou, se as lágrimas derramadas tivessem o poder mágico de apagar feridas
como as ondas do mar alisam a areia, apagando pegadas, destruindo castelos
construídos por crianças, varrendo o lixo abandonado por cidadãos mal educados.
Lágrimas seriam um santo remédio, mas não são nada mais do que o acúmulo de dor
em forma líquida, que jorra por um vertedouro, esvaziando o reservatório
interno com capacidade que parece nunca se esgotar. Só o tempo prova que aquela
caixa d’água interna é finita. Em certa hora, as lágrimas secam, a dor se esvai
e a alma volta a vibrar diante da vida.
As lágrimas de Marina ainda não haviam cessado. Desejava
tanto que pudessem lavar a pele e arrancar as cicatrizes, deixando a pele igual
à de um recém-nascido. Quis acelerar o tempo, quis voltar no tempo. Tudo
parecia confuso e embaralhado.
Voltou a desenhar na areia uma silhueta feminina, como
Bernardo fazia ao percorrer cada recanto de seu corpo. Com a ponta do dedo,
deslizava por sua pele, descobrindo curvas, recantos, detalhes. Ele parecia
retratar seu corpo numa tela em branco, com leves pinceladas de cor e vida. Ela
ficava admirada com o carinho e as palavras que marcavam aqueles momentos de
início de relacionamento. O tempo parava, os problemas desapareciam, o trabalho
da faculdade que estava atrasado evaporava, a doença do avô era esquecida. Tudo
era simples e parecia fácil.
Uma linha. Uma onda. E tudo desapareceu.
quarta-feira, 23 de maio de 2018
Conto: Aquário, câncer
CONTO: AQUÁRIO, CÂNCER
Pouco depois das 7 e meia da manhã achei uma vaga no
Starbucks do Itaim. Algo raro e imaginei encontrar a loja vazia, afinal ainda
era cedo. Ao abrir a porta, uma fila razoável e dois motoboys de serviços de
entrega de comida por aplicativo se enfileiravam diante do caixa. Pensei
comigo, quem pede um Frapuccino via aplicativo às 7 e meia da manhã?, seria
preguiça de sair de casa ou a realidade de eremitas que não desgrudam de seus
aparelhinhos e preferem degustar sua bebida em casa, longe de olhares estranhos
e do convívio social? Seriam estas imensas janelas, tão generosas na iluminação
natural, a dar a sensação de um enorme aquário onde seres humanos substituem os
mais diversos peixes ornamentais?
Uma certa irritação começou a me dominar, porém hoje era um
dia daqueles em que as irritações do cotidiano seriam solenemente desprezadas.
Tinha algo muito mais sério a dominar meus pensamentos. Pensei em ir embora,
dar meia volta, mas respirei fundo e voltei a ser absorvido pela efemeridade de
momentos corriqueiros. Distraí-me observando os que estavam na minha frente e
tentando descobrir o que se passava naquelas mentes.
No caixa, uma adolescente com uniforme de escola inglesa,
saia xadrez, camisa de gola e botões na parte dianteira e uma fina gravata
listrada pendurada no pescoço sem qualquer cuidado com o nó. A senha do cartão
não funcionou. Ela chamou a irmã. Nova tentativa no cartão. Sem êxito. A irmã
tirou uma nota de cinquenta e pagou. A atendente se atrapalhou com o troco. Perguntou
se o pão de queijo era normal ou integral. A simplicidade da vida agora era
atacada por opções e variantes sobre o mesmo tema. O leite podia ser de soja,
integral ou desnatado. O pão de queijo integral ou tradicional. O açúcar também
tinha suas variações: mascavo, orgânico, cristal. Isto sem mencionar o adoçante
em gotas ou em pó.
A cliente seguinte foi mais rápida, assim como o motoboy do
aplicativo. Quando chegou minha vez, já havia desistido do pão de queijo e
queria apenas um café espresso. Seu nome?, veio a pergunta habitual. E eu, como
de costume, inventei um: Heitor. Sempre escolho um nome diferente e fora do
comum só para me divertir com o atendente escrevendo o que ouviu no copo ou no
papelzinho.
Passei para o canto da loja e continuei observando os que
estavam na minha frente, como se fosse um espião ou agente secreto. Uma moça de
pele clara, cabelos escorridos, unhas cortadas bem curtas e sem esmalte.
Deveria ser engenheira ou da área de TI. Pelo jeito não era vaidosa e não
trabalhava em uma empresa ou cargo que exigisse um pouco mais de cuidado
pessoal. Não era desleixada, nem feia, mas pelo visto não prezava tanto a aparência.
Talvez estivesse de férias. No antebraço uma discretíssima tatuagem, um risco
fino e contínuo que contornava todo o braço, dando a impressão de que seu braço
havia sido cortado por uma fina lâmina de metal. Ou poderia ser apenas um risco
de caneta bem fina. Mayara era o nome dela. O nome não combinava com a pessoa.
Bruno, gritou a moça com um copo na mão e o motoboy se
apresentou para retirar dois Frapuccinos, um de chocolate e outro de café.
Pediu um suporte de papelão para segurar os copos. Soltou um valeu e partiu
para seu destino. A menina da escola inglesa ainda aguardava seu pedido. Parecia
impaciente. Atrás de mim três jovens de seus vinte e pouco anos, típicos
representantes da geração millenials, no vestir-se e no falar, computador a
tiracolo, insistiam em falar sobre a importância de ser agressivos nesse
mercado – não sei qual – e em contar com um sujeito que manje muito de
finanças. Falavam mais alto que os demais, a conversa animada, qualquer um
diria que já haviam tomado uma jarra de café.
O mundo para um millenial ainda é pequeno, um início de
caminhada, uma dimensão a ser explorada e conquistada com um aplicativo – ou
vários aplicativos – que fosse disruptivo e transformasse a forma de fazer
negócio, de se viver, de pedir um café pela manhã ou de saber quanto você gasta
com gasolina no final do mês, tudo organizado numa planilha.
Não ri, mas senti um pouco de pena da ingenuidade destes
jovens que desprezam o tempo com arrogância, como se fosse algo reutilizável,
reciclável. O tempo se esvai rápido e depois que o segundo do relógio passa,
ele não volta jamais. “Etor”, gritou a moça informando que meu café estava
pronto, achando que era um nome inspirado em algum personagem da Marvel.
Açúcar, uma rápida mexida e o café morno foi consumido. Sai da loja ainda me
divertindo com o pequeno espetáculo e as pequenas preocupações daqueles
personagens. Passei por eles como o homem invisível, sem ser notado. Não me
importei. A única coisa que me importava naquela manhã era que haviam
descoberto um novo câncer no estômago de meu pai. E a batalha pela vida recomeçava.
quarta-feira, 28 de março de 2018
Saudade futura
A saudade lhe pesava como asas de chumbo num passarinho,
cravado no chão, tolhido de todo o direito de voar, de fugir do caminhar rotineiro.
Achava que a saudade havia sido curada com o tempo, mas num momento avassalador,
fora tomada de um peso enorme, maior do que ela. Não tinha saudade do passado,
tinha saudade do futuro, daquilo que nunca seria, e esta é a saudade que mais
machuca. A saudade do passado parece tão bela e lírica quando passeia num fado cantado
por uma voz afinada em alguma tasca de Lisboa, ou no Porto, ou qualquer recanto
onde se serve um bom vinho português e assa-se o bacalhau. A saudade do que
poderia ter sido, daquilo que ela achava que deveria ser, mas nunca foi e que
nunca será, exatamente esta saudade que lhe invadira a alma naquela manhã.
Ela sabia a causa de tudo isto e aquilo lhe incomodava. Como
poderia ainda sentir algo por ele depois de tantos meses, vinte e nove para ser
exata, pensou sem se levantar da cama. Aquele sonho viera em péssima hora,
adentrara seu sono tranquilo, um ladrão na calada da noite, e sua paz fora
roubada. Não que a paz fosse profunda e sincera, mas ela se enganava achando
que havia conquistado a paz de coração finalmente. E alguma vez o coração fica
em paz?, perguntou-se. Virou para o lado e viu que o relógio marcava 7:45. Já estava
atrasada, mas que importava, quem se importaria com seu atraso, com a ausência
de seu sorriso, com a aparência de que tudo estava bem. Não conseguiu conter algumas
lágrimas que desenharam um traçado retilíneo em sua pele macia e sedosa. Apesar
dos anos, era uma mulher bonita, mas que se deixara aprisionar numa saudade
futura.
quinta-feira, 1 de março de 2018
Conto: A mulher do voo
A MULHER DO VOO
O voo que me levaria de volta a São Paulo não estava muito cheio e pude escolher o assento do corredor. Impossível dizer que havia conforto, pois nos dias de hoje, voar tornou-se um tormento, um aperto, um exercício de contorcionismo. Acomodei a mala de mão no bagageiro, apertei o cinto e abri o jornal. Abrir é força de expressão, claro, pois não é possível se esticar num avião sem acertar o passageiro do lado. Apesar de todos percalços e incômodos, voar ainda me alegra. Gosto de voar. Talvez uma daquelas coisas de menino que sonha em ser piloto, em poder observar o mundo de cima, do alto, por entre as nuvens, vislumbrar o nascer do sol, admirar o poente, contemplar estrelas e a lua na imensidão da noite.
Voltei-me para o jornal após o passageiro que escolheu o assento da janela acomodou-se. Foi então que percebi, na minha diagonal, uma fileira à frente, uma mulher. Não a deixei perceber que meu olhar havia se fixado em seu belo rosto. A discrição era fundamental para que me perdesse em pensamentos e lembranças. Seu rosto me lembrava alguém, mas sou péssimo fisionomista. Sou excelente para nomes, dados, datas, mas meu cérebro não tem espaço para armazenar fisionomias.
Olhou para a direita e pude admirar a pele clara, uma boneca de porcelana, não sem vida ou de uma brancura insípida, mas de uma clareza solar, qual os primeiros raios a refletirem em gotas de orvalho na relva. Delicada, de traços bem cuidados, ângulos suaves. A maestria do artista era notada nas sobrancelhas a contornar os olhos. Percorria cada detalhe do rosto, hipnotizado e absorto. Havia um mistério naqueles olhos castanhos escuros, os cílios longos e a maquiagem leve. A boca era um capítulo à parte. Desenhada com precisão, os lábios vermelhos eram um convite para serem devorados com um beijo voluptuoso e imprudente. Contive-me e controlei aquele arroubo momentâneo. A natureza, por vezes, aproxima-se da perfeição, do convite à contemplação, e ali me perdi a contemplar seu rosto.
Estava séria, alheia a todo o redor, contemplativa, devia estar dialogando com seus pensamentos, preocupações. Parecia que viajava a trabalho, mas vestia-se de forma casual, a elegância de quem não precisa ostentar, de quem exala autoconfiança. Guardava a dor e o mistério dentro de si, aqueles segredos que só confidenciamos a nós mesmos e que não compartilhamos com mais ninguém.
Tentei voltar ao jornal, mas lia as notícias sem deixar de pensar naquela mulher próxima. Tirei um caderno de anotações do bolso do paletó e pus-me a rabiscar algumas linhas. Uma descrição da cena, breves palavras. Quem sabe, serviriam para algum texto, ou para uma epígrafe de livro. Cada um sabe a dor e o mistério que carrega dentro de si, escrevi.
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