quinta-feira, 1 de março de 2018

Conto: A mulher do voo




 A MULHER DO VOO

O voo que me levaria de volta a São Paulo não estava muito cheio e pude escolher o assento do corredor. Impossível dizer que havia conforto, pois nos dias de hoje, voar tornou-se um tormento, um aperto, um exercício de contorcionismo. Acomodei a mala de mão no bagageiro, apertei o cinto e abri o jornal. Abrir é força de expressão, claro, pois não é possível se esticar num avião sem acertar o passageiro do lado. Apesar de todos percalços e incômodos, voar ainda me alegra. Gosto de voar. Talvez uma daquelas coisas de menino que sonha em ser piloto, em poder observar o mundo de cima, do alto, por entre as nuvens, vislumbrar o nascer do sol, admirar o poente, contemplar estrelas e a lua na imensidão da noite.

Voltei-me para o jornal após o passageiro que escolheu o assento da janela acomodou-se. Foi então que percebi, na minha diagonal, uma fileira à frente, uma mulher. Não a deixei perceber que meu olhar havia se fixado em seu belo rosto. A discrição era fundamental para que me perdesse em pensamentos e lembranças. Seu rosto me lembrava alguém, mas sou péssimo fisionomista. Sou excelente para nomes, dados, datas, mas meu cérebro não tem espaço para armazenar fisionomias.

Olhou para a direita e pude admirar a pele clara, uma boneca de porcelana, não sem vida ou de uma brancura insípida, mas de uma clareza solar, qual os primeiros raios a refletirem em gotas de orvalho na relva. Delicada, de traços bem cuidados, ângulos suaves. A maestria do artista era notada nas sobrancelhas a contornar os olhos. Percorria cada detalhe do rosto, hipnotizado e absorto. Havia um mistério naqueles olhos castanhos escuros, os cílios longos e a maquiagem leve. A boca era um capítulo à parte. Desenhada com precisão, os lábios vermelhos eram um convite para serem devorados com um beijo voluptuoso e imprudente. Contive-me e controlei aquele arroubo momentâneo. A natureza, por vezes, aproxima-se da perfeição, do convite à contemplação, e ali me perdi a contemplar seu rosto.

Estava séria, alheia a todo o redor, contemplativa, devia estar dialogando com seus pensamentos, preocupações. Parecia que viajava a trabalho, mas vestia-se de forma casual, a elegância de quem não precisa ostentar, de quem exala autoconfiança. Guardava a dor e o mistério dentro de si, aqueles segredos que só confidenciamos a nós mesmos e que não compartilhamos com mais ninguém.

Tentei voltar ao jornal, mas lia as notícias sem deixar de pensar naquela mulher próxima. Tirei um caderno de anotações do bolso do paletó e pus-me a rabiscar algumas linhas. Uma descrição da cena, breves palavras. Quem sabe, serviriam para algum texto, ou para uma epígrafe de livro. Cada um sabe a dor e o mistério que carrega dentro de si, escrevi.


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