terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Na passarela do samba






O sol ainda ia alto na tarde que avançava com algumas nuvens amendrontadoras a surgir lá pelo lado da zona norte, quando saí de casa rumo a um ponto de encontro num bairro da zona sul paulistana. Um grupo de pouco mais de trinta pessoas abraçaria a aventura de desfilar numa escola de samba, o Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Unidos do Peruche. Eis o nome pomposo e completo de uma agremiação sambística. No nosso grupo,  um holandês, um suíço e paulistanos de origem e rostos variados, a maioria sambistas de primeiro desfile.

Seria meu primeiro desfile numa escola de samba, pela primeira vez a entrar no sambódromo do Anhembi, na passarela do samba. Memorizei o samba-enredo, li sobre o enredo, mas não fui a nenhum ensaio e nem pus os pés na quadra da escola na zona norte. Aceitei o convite, mas avisei que estava com uma agenda complicada para participar de ensaios. Comprometi-me a fazer a tarefa mínima: pagar pela fantasia, decorar o samba-enredo e estar em condições físicas de ajudar a escola. Tinha a doce ilusão de que seria mais um daqueles itens a marcar na longa lista de “1000 coisas a fazer antes de morrer”. Tudo bem, não é a Marquês de Sapucaí, mas é o GRCSES Unidos do Peruche, um integrante do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo. Convenci-me de que o desfile contaria como válido para a lista.

No ponto de encontro, o salão de festas havia se transformado num camarim de teatro, nos bastidores de uma companhia mambembe em preparação para o espetáculo. O samba-enredo tocava nos alto-falantes oriundo de um telefone celular. A modernidade auxiliando na preparação. O clima descontraído, divertido, alguns cantando, outros ensaiando e repassando a coreografia de uma das alas. Neste momento, dei-me conta da grandeza da tarefa de organizar um desfile e aquela sensação só iria se aprofundar ao longo da noite que viria. As fantasias, ainda que de material simples, eram bem acabadas e elaboradas com dedicação e amor por todo um enorme grupo de pessoas apaixonadas pela Peruche.

A palavra “Comunidade”, que me lembro de ter ouvido pela primeira vez numa daquelas aulas de Estudos Sociais lá no 2o. ano do ensino fundamental, ganhava vida e vigor, uma nova perspectiva. Em qualquer desfile de escola de samba, talvez comunidade seja o vocábulo mais falado por todos os envolvidos, comentaristas, puxadores de samba, letras de samba, diretores de escola. Há uma sobreposição entre a comunidade e a escola, quase uma confusão de ambas. A escola é a manifestação física da comunidade, uma forma de demonstração do que a comunidade é capaz de fazer, ainda que os recursos sejam escassos e as dificuldades imensas. Descobriria, mais tarde, que ao vestir a fantasia da ala “Boemia”, por alguns momentos, passaria a integrar o exército da comunidade, ainda que na qualidade de soldado mercenário.

Um ônibus partiu às 17:30 rumo à quadra da Peruche. Os neocarnavalescos entoavam o samba com animação, o que mais parecia um ônibus de torcida organizada ou talvez um grupo de jovens escolares em uma excursão. Numa São Paulo sem trânsito, o ônibus foi limitado apenas pelo absurdo limite de velocidade imposto pelo prefeito Fernando Haddad, que – esperamos – inicia seu último ano de mandato.

A parada na quadra era necessária para que nos juntássemos ao comboio de ônibus credenciados com acesso direto ao Anhembi e para que as últimas fantasias fossem ajustadas. Um temporal desabou enquanto esperávamos a partida rumo ao destino final. A espera foi um pouco cansativa e suficiente para reduzir os níveis de adrenalina e amenizar a empolgação do grupo. O clima, porém, permanecia em ebulição. Com a parada da chuva e a temperatura mais amena, era hora de partir para o sambódromo. Passava das 21 horas e o início do desfile estava previsto para as 22:30.

No Anhembi, a chegada foi tranquila e agora era necessário localizar o chefe de ala para pegar o costeiro que complementava a fantasia e alinhar na ordem correta de entrada na avenida. A organização novamente me surpreendeu. Os chefes de ala uniformizados com a camisa da agremiação, calça branca e sapatos brancos eram fáceis de localizar. O costeiro era maior do que imaginava. O peso não incomodava, mas era grandioso e ampliava o espaço lateral do corpo não permitindo passar por espaços pequenos sem esbarrar em pessoas. Na área que antecedia a concentração, grupos de iguais se formavam, fantasias de cores variadas e em cada setor uma cor predominava. A ala Boemia trazia chapéus azuis, uma camisa listrada de azul e branco na horizontal, calça branca e um costeiro preto que lembrava uma clave de sol e penas azuis na parte superior. Diante de nós, uma ala toda vermelha e atrás uma ala onde o verde claro era a cor predominante.

Aos poucos, a ala ganhou corpo com todos os integrantes prontos. Diretores de ala checavam as fantasias, ajustavam costeiros, davam instruções preliminares. Então, começamos a andar em direção à concentração. Um diretor passa por entre as alas, vestido de terno azul, falando com voz forte e dando a palavra de ordem: “Superação! Superação Peruche! A palavra é superação comunidade!”. Alguém grita o nome da escola e a massa repete em coro, uma torcida animada, um time pronto para entrar em campo.

A caminhada cessa na área da concentração, onde é possível contemplar a grandiosidade dos carros alegóricos, muito mais belos ao vivo do que retratados na televisão. Os puxadores de samba ainda não iniciaram o esquenta. Um telão mostra que ainda é horário de BBB. Um chefe de ala informa que serão fileiras de 8 pessoas e que é preciso ficar alinhado. Ele cumprimenta um a um, cada integrante da ala, pedindo garra, vontade, que todos cantem o samba, que todos sorriam. Alinhamos como um batalhão de exército, uma tropa pronta para a batalha.  Senti-me um soldado, já vestido de armadura e pronto para lançar-me no campo de batalha, de peito aberto, como aqueles escoses liderados por Mel Gibson em Bravehart (Coração Valente). O sentimento era de pertencimento, ali, naquela hora, você faz parte da comunidade, você é uma peça daquela engrenagem que se chama escola de samba.

O presidente faz um breve discurso, chamando todos para o desfile, convocando seu séquito para dar o melhor de cada um, para lutar na avenida pelo pavilhão da escola. Segue-se o puxador oficial da escola a conclamar todos com o esquenta, a cantar sambas de outros carnavais. Um arrepio percorre toda a espinha. A emoção toma conta e contagia toda a escola que começa a cantar o samba enredo de 2016.

Firma o pandeiro e o tan-tan
Tem samba até de amanhã
E a nação perucheana faz a festa
O meu batuque ecoou
Um lindo canto de amor
A filial chegou


O refrão é repetido e será repetido por dezenas de vezes até o final do desfile. Não sei quantas vezes cantei o samba, mas dois dias depois do desfile, acordo com o samba na cabeça, a ecoar mentalmente no aparente silêncio da pauliceia em dias de carnaval. A bateria e sua batida, o ritmo contagiam de forma única e inebriante. Não há cansaço, ou calor, ou fome que impeçam a entrada no palco com energia total. Uma imensa alegria inunda o corpo e o espetáculo começa. Desta vez, você é o artista, você é o espetáculo, ou parte do grande espetáculo, mas cuja performance é essencial para o todo, para o triunfo da comunidade.

O tempo na passarela é curto. Pouco mais de vinte minutos e acaba. A missão foi cumprida. O cansaço só é sentido depois da dispersão. Só na dispersão você olha para trás e vê um enorme carro alegórico que lhe seguiu por toda a avenida, mas não se olha para trás durante o desfile. Observo por alguns instantes a parte do desfile que não vi, as alas que estavam na parte final da escola, com um sentimento de realização, de alegria e de poder ter contribuído um pouco com a escola e a comunidade.

No ano que vem voltarei.  Agora é aguardar a apuração e torcer. Quem sabe não voltamos no desfile das campeãs?



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