CONTO: Corra, corra!
Fazia questão de acordar cedo todos os dias, exceção feita
aos sábados, domingos e feriados. Nos demais, levantava-se pouco antes do
nascer do sol de modo a estar na rua e ter a face acariciada pelos primeiros raios
solares. Gostava de contemplar a luminosidade matinal, como uma cortina que se
abre e revela o cenário do palco, a cidade que despia sua roupa escura, cenário
conhecido mas que ganhava tonalidades e cores inesperadas conforme a estação do
ano, a bruma matinal, a maresia, o
cheiro. A corrida era uma necessidade, uma forma de espantar a preguiça do
corpo e punir a carne com esforço e sacrifício, para ao final desfrutar de uma
descarga benéfica de hormônios.
O silêncio da manhã, da cidade ainda adormecida,
instigava-lhe a imaginar as vidas ao seu redor, as pessoas que cruzava –
algumas habitualmente – em caminhadas ou corridas na orla da praia, faça chuva
ou faça sol, sem intempérie a detê-los. Era uma disciplina quase fanática,
quase militar, um exército de viciados em atividade física. Se ela fosse um
robô agiria igual, pensou alongando os braços e pernas antes dos exercícios.
Hoje dispensara a música. Optara pelo silêncio de seu universo próprio, como
fazia todo dia 5 de cada mês.
A dor se misturava com a nostalgia, a melancolia com a
saudade, a raiva com a compaixão. Nestes dias, era um cadinho de sentimentos em
ebulição. Sensações que beiravam a dor física. Passaram-se seis anos desde
aquele dia de novembro, mas tudo permanecia vivo e ela se odiava por isso.
Deveria ter morrido o sentimento. Ele deveria ter morrido. Não bastava fechar os olhos. O
coração não tem olhos, pensou. Deixou-se abraçar pelo sol, deu dois saltos para
sair do transe que lhe arrastava sem rumo e começou a correr.
Março trazia a instabilidade de um mês de transição. As
manhãs não eram tão quentes, menos úmidas que nos meses anteriores. Fim de
verão com as águas de março, mas hoje o dia resplandecia com toda sua
majestade. O vento era leve e lhe
beijava o rosto com delicadeza. Seu cabelo preso num rabo de cavalo balançava
num movimento pendular e ajudava a marcar o ritmo das passadas. Precisava se
concentrar no começo, até que o ritmo lhe dominasse o organismo e tudo ficasse
cadenciado numa máquina azeitada. Respiração, passada, braços, batimentos,
olhar altivo. O cronômetro acionado para registrar tudo na planilha de treinos.
A disciplina era rigorosa. Ela riu ao pensar em quantos lançamentos fizera nas
planilhas de treino, quantos minutos correndo, quantos quilômetros correndo,
quantos momentos da vida foram passados ali à beira-mar correndo, delirando com a
paisagem da cidade sonolenta, lutando contra seu segredo, esforçando-se por
esquecer o que nunca esqueceria. A corrida era uma tortura prazerosa que lhe
permitia momentos de plena solidão, de pleno esforço e luta, de dominação do
corpo pela mente e imaginava que isto algum dia, lhe permitiria esmigalhar por
completo o sentimento guardado.
Uma bicicleta passou buzinando e ela se distraiu,
atrapalhou-se no ritmo da passada, não a ponto de cair, mas revelando-se
desengonçada. Achava-se pouco ágil, pesada demais para correr longas
distâncias, mas percorria diuturnamente os oito quilômetros da beira-mar,
quatro de ida e quatro de volta, concluindo o treino com uma refrescante água de coco.
Ao menos, a corrida lhe dera mais resistência, pernas firmes, pele viçosa, colesterol
baixo e um tornozelo que por vezes fazia questão de lembrar-lhe que os 40 anos
já haviam sido superados. Ela ria de si mesma. Não corria para ficar gostosa.
Corria para ter a sensação de que tinha condições de fugir, de escapar da
realidade, como se a corrida lhe condicionasse e lhe preparasse para um momento
de reencontro e então ela correria e correria e correria, sem olhar para trás,
sem hesitar, sem temer o coração e com total racionalidade.
Ela tinha medo do reencontro. Tinha medo de emails, de
presentes, de livros, de textos, de cartas, de recados, de bilhetes, de
telefonemas, se bem que telefonemas eram coisa do passado. Achava mais
arriscado encontrar um recado no whatsapp. Tudo se rompera em determinado
momento. De uma única vez, como arrancar esparadrapo. Ele insistira. Ela
calara. Um ano se passou e ele continuava a mandar sinais de fumaça, sem
insistência, de forma delicada e carinhosa. Ela foi firme. Um dia ele desistiu,
ou assim, achava ela. No fundo, desconfiara que em algum momento inesperado ele
reapareceria e então ela teria que retomar sua fuga. Tinha que estar preparada
e treinada. A corrida era a solução. Tinha que correr. Tinha que fugir. Tinha
que estar alerta. Dispararia como um cometa, um cavalo chucro a correr numa
planície qualquer.
E todo dia 5 a tensão atingia níveis extremos de ansiedade.
Ele nunca mais aparecera, mas o que será que o destino guarda, ela pensou. Será
que teria coragem de fugir? Será que seria forte o suficiente para fugir? Ou o
coração me trairia novamente? As dúvidas açoitavam seus pensamentos com
pontadas firmes, como se estivesse presa ao pelourinho recebendo chibatadas
pelo seu mau comportamento. A ternura de seu olhar seria um bálsamo para o
corpo cansado e teimoso. Por que fugir? Por que correr? Pare de pensar e corra.
Corra. Corra!