sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Crônica: Ampulheta



AMPULHETA


Descalço, o chão ainda quente com o calor do dia, atravessou a sala semi-iluminada, afastou a grande porta de correr, que mais parecia uma enorme janela, e saiu para o deck de madeira que dava acesso ao gramado frontal da casa, que por sua vez esticava-se até a areia da pequena praia privada. Bem, deveria ser pública, mas só se chegava à praia depois de passar pela portaria do condomínio e caminhar por cerca de dois quilômetros de subidas e descidas.

Roberto acendeu um cigarro, enquanto a leve brisa da noite roçava seu rosto e a ondas do mar davam a música de fundo, quebrando o silêncio da solidão. O céu recoberto de pontos brilhantes, numa noite clara, porém sem lua. A maresia trazia consigo um ar indigesto. O aroma lhe incomodou e tossiu, como se estivesse nauseado, uma tosse intensa, longa, alta. Ninguém o ouviu, pois todos já haviam adormecido. Estava sem sono. Talvez fosse o cigarro que lhe causava aquela náusea; talvez a discussão com a mãe; talvez a sensação de que a aparente solidez de sua vida começara a ruir. Grãos de areia escorrendo silenciosamente como se seus dias fossem uma ampulheta.

Tragou novamente o cigarro e soltou a fumaça numa longa baforada para o alto. Gostava de fumar e isto irritava profundamente sua mulher. Estava pouco preocupado com o que a irritava de uns tempos para cá. Sentiu-se egoísta com este pensamento, mas era verdade. Tinha que ser sincero consigo mesmo, recomendara um amigo psicanlista. É preciso perder o medo da verdade e de dar nome às coisas. Chega de devaneios e de juízos parciais, Roberto. O obstáculo a ser vencido porém, não era dar nome às coisas, mas sim externá-las, dizê-las em alto e bom som. A mulher não o ouvia, ou fingia não ouvir. E Roberto tinha medo de falar.

Durante toda sua vida, ouvira dizer que a comunicação é o segredo da longevidade de todo casamento e de todo o relacionamento. O amor vence as barreiras linguísticas e ataca corações, ainda que os seres não falem o mesmo idioma. O amor ataca sem aviso, sorrateiro, invade lentamente o ser, e domina-o, estrangulando-o, anestesiando-o, desnorteando-o. Quando se dá conta, o coração já sequestrou a razão e esta, coitada, se vê perdida num canto da vida, no aguardo de que o coração bobeie e a razão retome as rédeas da montaria.

No início conversavam longamente, sem tempo, sem relógio, sobre tudo. Perdiam-se com as conversas. Temas variados, nunca entediados, sempre com sorrisos, beijos e carícias, longos abraços. Aquelas tardes na rede do sítio, tardes sem pressa, tardes para simplesmente ficar juntos. Dilemas, discussões, entreveros eram superados com bom senso, sorrisos e um sendo convencido pelo outro a mudar de posição. Claro que não concordavam com tudo, mas sempre algum deles cedia e tudo acabava bem, com um longo beijo na boca e um sorriso renovado.

“Jamais durmam sem resolver uma briga!”. Ouvira o conselho no curso de noivos na Igreja de São Gabriel. Não se lembrava de muita coisa daquele curso, apenas deste conselho. E seguiam-no à risca. Até que algo estremeceu e o conselho perdeu seu vigor. Roberto parecia cansado de ceder, de atenuar as coisas, de abrir mão do que pensava e achava. As implicâncias aumentavam, com coisas banais e outras relevantes. Tentara falar. Em vão. Novamente, conversaram. E a resposta, foi desanimadora. Parecia que dialogavam em dois idiomas completamente diferentes, ou melhor, não dialogavam. Eram monólogos, discursos lançados ao vento, sem ouvintes, sem platéia e sem que o teor fosse compreendido. Por vezes, Roberto tinha vontade de rir. Tudo era muito estranho, cômico até, pois não se entendiam. As brigas eram mais frequentes. As discussões constantes e a paz evaporara, assim como a fumaça do cigarro. E voltara a fumar sob o pretexto de que estava estressado no escritório e com bloqueio para escrever. A verdade ele sabia. O cigarro tinha a função de irritá-la. Ou talvez afastá-la, forçá-la a tomar coragem e decidir por ele. Ela encararia a verdade que ele temia e se recusava a trazer à tona.

O plano passou a ser este. Roberto agiria de forma proposital para que ela tomasse a iniciativa, para que ela provocasse uma briga final, para que ela desse um basta ao relacionamento, para que ela ficasse na situação de vencedora diante de um fracassado. O cigarro era um primeiro passo. Roberto pensou em esticar mais as viagens a trabalho, talvez numa viagem de sexta-feira, voltaria somente no sábado. Precisava de uma estratégia e de um plano. Acendeu outro cigarro e com o olhar nas estrelas, iniciou a planejar uma forma de romper com a mulher sem que tivesse que se desgastar. “Doce ilusão”, pensou consigo mesmo.” Já estou desgastado. Já estou drenado, agora só me falta a coragem.”


2 comentários:

Fabiola disse...

Coragem... eis a palavra da vida.
Acho que muitas pessoas se acomadam diante de várias situiações e acabam desanimando.
Mas este cigarro

disse...

Não consigo entender certas escolhas. Por que manter uma situação que faz mal a ambos? Por que "inventar" motivos para aumentar o distanciamento até o limite do insuportável? Por que não tomar logo uma atitude? Por que esperar dela a decisão?
Não consigo mesmo entender....
Beijos e boa semana