sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Poesia : Invisível

 

foto: Renato Bueloni Ferreira



INVISÍVEL


Mergulho no profundo âmbar dos seus olhos

olhar distante e perdido numa dimensão impenetrável

tento decifrar teus pensamentos, sentimentos, humores

tento entrar em tua corrente sanguínea e chegar ao coração

ao âmago da tua alma, ainda que imaterial e inalcançável

rodeio perdido no labirinto do teu ser e não acho o caminho.

Desnorteado, aceito minha incapacidade de despertar em ti

a fagulha que incendeia o candeeiro

a brasa que faz arder o coração e aquece a água do chimarrão.

Pobre de mim que passo invisível diante do profundo âmbar dos teus olhos.


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Conto: Arembepe

 


AREMBEPE


Ela deixou suas pegadas na areia escura da praia deserta. Abraçada pela brisa do mar, que salpicava sua pele com a maresia, sentiu uma enorme liberdade borbulhar em seu coração. Desconectada, tinha apenas o céu azul, imenso e rabiscado por algumas poucas nuvens, como tela para contemplar. Nenhum recado de whatsapp ou email para responder, apenas a areia da praia, o mar, o céu, os coqueiros, a companhia da amiga. Pancetti se encantaria com a vivacidade das cores e retrataria de forma magistral em uma de suas telas, pensou.

A cabeça ainda girava com ideias para projetos e iniciativas, mas apaziguava estas inquietações, deixando o sol lhe acariciar a pele e espantar a tez cor de escritório paulistano. Não havia ninguém ao redor. Tudo deserto a perder de vista. Caminhou pela praia sem rumo, sem medir os passos, sem contar calorias ou ritmo, apenas caminhou e deixou que as ondas beijassem seus pés. A água morna massageava aqueles pés cansados. Ah, como era bom andar descalça, sem compromisso, sem horário, sem metas ou horários a cumprir!, pensou e deixou-se inundar pela calma e tranquilidade do lugar.

Os óculos de sol filtravam a luz que se projetava nos olhos âmbar. O azul ficava mais vivo por detrás das lentes. O verde estava mais intenso e a claridade era domada. Deitou-se sobre a canga e apenas deixou o tempo passar. Fechou os olhos, tirou os óculos e respirou profundamente. A alegria tomava-lhe o corpo e atiçava a alma. Se tivesse encomendado um dia para iniciar as férias, não teria pensado em algo tão perfeito e belo. A vida tem destas surpresas e agradeceu por estar ali, viva e contemplando toda aquela beleza. Talvez o que lhe faltava era exatamente a coragem para fugir do agito e mergulhar no silêncio de Arembepe.


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Reflexão

 


Nos encontros, sempre é mais feliz aquele que ama mais. Valorize os encontros. Valorize o tempo. Valorize o presente.


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Silêncio e ruídos na metrópole

 


Praça Vinicius de Moraes - @rbueloni


Se no dia de hoje no ano de 2019, alguém dissesse que no ano seguinte estaríamos todos trancafiados em casa, isolados, temerosos de andar na rua e de qualquer contato social, teria sido rotulado como uma bela pegadinha do dia da mentira.

 

O filósofo coreano Byung-Chul Han inicia o seu Sociedade do Cansaço (2014) afirmando que o desenvolvimento tecnológico afastara o risco de uma pandemia, pois havíamos dominado a fabricação de remédios capazes de evitar o alastramento de doenças em escala global. Ledo engano.

 

Em 20 de março de 2020, iniciamos uma quarentena no Brasil e o mundo ficou paralisado por causa da Covid-19. Uma pandemia que interrompeu o comércio internacional, as viagens, esvaziou escritórios e obrigou-nos a ficar em casa, isolados em nossas celas e o silêncio tomou conta das cidades. Alguns achavam que era o apocalipse, outros ficaram indiferentes e riam da “gripezinha”. Muitos morreram. Outros tiveram sequelas. Os serviços de saúde ficaram sobrecarregados até que se encontrou uma vacina e um possível protocolo de tratamento.

 

O que mais me marcou naqueles dias de isolamento foi o silêncio. A forma como a sonoridade da cidade mudou de forma radical.

 

Outro dia, caminhando na Praça Vinicius de Moraes num sábado pela manhã, ouvi o canto de algumas cigarras. Uma memória afetiva da infância no sítio me transportou de volta para os anos 1980. Grilos, latidos de cachorros, sapos coaxando, o relincho de um cavalo, um galo a cantar. Sons do interior, trilha sonora de roça, mas que tanto acalma o íntimo. Um convite para desacelerar e apenas ouvir os ruídos deitado numa rede ou sentado no gramado.

 

Tenho para mim que as pessoas não se atentam muito para os sons, para os ruídos da cidade grande. São Paulo é barulhenta, mas aqui no escritório, desfrutamos de um silêncio quase monástico em alguns dias quando o telefone dá uma trégua e passamos o dia trabalhando em silêncio. Sim, hoje em dia, pode-se dizer que o trabalho do advogado é silencioso. O silêncio que é interrompido apenas pelo dedilhar das teclas no computador. Até meu celular fica sempre em modo silencioso. Aprecio o silêncio e deixo-me levar. O silêncio inspira, acalma, convida-me a conversar com Deus. O silêncio é a porta de entrada para a vida interior, para os recantos da alma.

 

Não tenho saudades da pandemia e nem do isolamento, mas a pandemia deixou como fruto positivo a redescoberta do silêncio. Talvez não a redescoberta, mas o contraste entre o silêncio e a agitada rotina paulistana. Um contraste que exige atenção para ser percebido, um contraste que pede sensibilidade, pois é sutil e passa despercebido pela grande maioria das pessoas que caminham neste imenso formigueiro que é a pauliceia.


quinta-feira, 7 de março de 2024

Conto: Esquecida

 



The bridge at Herndon, Virginia - @rbueloni



ESQUECIDA


Eu me chateio. Ainda. Talvez não devesse mais, após 32 anos, mas eu havia pedido para tirar a calça de cima da cama antes dela deitar e apagar a luz do quarto. Era um pedido singelo, objetivo, direto. Bastava pendurar a calça no cabide ou deixá-la sobre a cadeira no canto do quarto. Mas ela ignorou meu pedido. Passou em branco. Aquele momento onde o ignorar se confunde com o esquecer e transforma-te em um ser invisível. Muita coisa passava em branco e cada vez com maior frequência.

 

Pedia para comprar pasta de dente no supermercado, ela esquecia. Pedia para pegar dinheiro no caixa eletrônico, ela esquecia. Perguntava se podíamos jantar com amigos, ela esquecia que iria trabalhar. E assim os dias se seguiram, um após o outro. Não me irritava, mas apenas me chateava e notava o esquecimento que recaía sobre mim. Estava sendo esquecido, abandonado, pedacinho por pedacinho, qual um navio de partida que se afasta do porto e a praia vai diminuindo de tamanho até que o horizonte se confunde com a imensidão do mar.

 

Um dia, levei-a ao médico. Desconfiava que aquele esquecimento pudesse ser algo a mais. Não deixei que fosse sozinha e marquei a consulta. Alguns exames e dias depois, veio o diagnóstico de Alzheimer em fase inicial. Ela estava se esquecendo da vida.