quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Rabiscando nas nuvens



Dizem que o céu de Brasília é único, uma aquarela de cores, um azul profundo, uma luminosidade própria da posição geográfica em relação à inclinação do eixo terrestre. Não sei se isto tem alguma fundamentação científica e também não vou pesquisar o assunto agora, pois foge ao meu interesse. Naquela tarde, o céu não estava azul, havia nuvens carregadas e carrancudas de um lado, outras menos amedrontadoras de outro e alguns raios solares que teimavam em escapar da cobertura nebulosa e davam alguma esperança de luz aos pobres mortais amontoados no saguão de embarque do aeroporto.

Não consigo compreender a pressa das pessoas em embarcar, formando filas antes da chamada do voo, desesperadas como se o avião fosse partir e deixá-las para trás. Sou paciente para embarcar, até porque com o espaço disponível nas aeronaves, quanto menos tempo se fica confinado melhor. 

Naquela tarde, acomodei-me no assento 29A propositalmente. Meu senso de direção levou-me a imaginar a rota do avião rumo a São Paulo e quis um lugar que me permitisse contemplar o céu, as nuvens, sem que o sol me cegasse. O avião rumaria para o sul e do lado esquerdo, minha vista seria para leste. Era pouco mais de 18:30 no horário de verão quando o avião decolou. Cirrus desenhavam sinais levemente esfumaçados no céu. Até atingir altitude de cruzeiro, a visão não foi atrapalhada pelas formações nebulosas.

Aos poucos, a claridade iniciou sua diminuição e o branco que pontilhava o céu, ganhou feições de um leve tom de rosa, depois alaranjado. Recostado na lateral do assento, meu olhar fixava-se nas nuvens abaixo e suas formações sinuosas. Qual criança, comecei a imaginar figuras, mas a primeira imagem que se projetou no fundo branco foi a do teu rosto, sorriso cerrrado, as bochechas bem desenhadas quase formando covinhas no canto dos lábios, escondendo um leve rubor, o olhar vivo, alegre, o cabelo sem cair sobre a testa, deixando todo o rosto exposto.

A criança cedeu rapidamente espaço ao adulto que resolveu rabiscar novas imagens na tela das nuvens. As cores mudaram com a luminosidade cadente, os retratos alternavam-se como num álbum de fotografias, mas a imagem era sempre sua.


*   *   *   *   *

Sempre foi muito fácil conversar com você. Nunca importou o meio de comunicação utilizado, e em tempos modernos, parece que a comunicação flui de várias formas e por diversos meios, mas nunca houve um conflito de compreensão, nunca houve um entendimento errado do que se queria dizer. Isto sim, é raro nos tempos de modernos, onde as pessoas parecem não ouvir, não compreender - ou fingem não ouvir. É mais fácil fingir, fechar-se e isolar-se do resto do mundo, afinal "ema, ema, ema cada um com seus problemas", diria algum jovem.

O difícil é conter a vontade de falar, de escrever, de ouvir. Isto aconteceu-me e permanece vivo. Alguns anos se passaram e parece que a cada conversa, a cada longo e-mail, novos assuntos surgem, novas perguntas brotam, o palpitar do coração torna-se audível, o vazio se preenche.

Sempre gostei de te ouvir, de te ler, de te adivinhar. A cada dia, gosto mais. 


sábado, 23 de novembro de 2013

Poesia: QUEM SOU?


QUEM SOU?

Obrigado por seres quem és!
E quem sou?
És brisa leve de final de tarde
a amainar o calor do dia
a aquecer o coração solitário
a brindar a vida
a acariciar a pele suada
a aliviar o corpo cansado

És céu coberto de estrelas
a aquietar a saudade
a iluminar a noite escura
a compartilhar segredos com a lua
a dividir o silêncio da madrugada
a escrever nos sonhos compartilhados

És luz do dia nascente
a inspirar palavras, textos e carinho
a compartilhar sorrisos e lágrimas
a buscar minha mão que te acolhe
a provocar arrepios com o olhar
a silenciar quando lhe foge o texto

És ar, és fogo, és vida
És mulher irrepetível
És pintura magistral
És bela, és terna, és flor.

(c) RLBF - 23 de novembro de 2013

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Epígrafe - XXI



"Se houvesse apenas uma única verdade, não se poderiam pintar cem telas sobre o mesmo tema."

Pablo Picasso (1881-1973) (Revista História Viva, Ano XI, n. 121,  novembro de 2013, p. 13)


A realidade permite variadas interpretações, narrativas, versões, descrições, mas isto não a transforma a realidade única em múltipla. Da mesma forma, a verdade é única, ainda que seja descrita parcialmente ou de forma distinta. Se houvessem múltiplas verdades, o conhecimento da realidade não seria possível. 

Picasso parece confundir esta multiplicidade de versões que retratam a verdade e a realidade de forma parcial, ou seja, as várias versões sobre o mesmo tema são complementares e conduzem ao conhecimento da verdade plena e única.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Conto: Pergunte ao poeta


A brisa refrescava a orla de Copacabana um pouco mais do que o usual a ponto dela vestir um casaquinho. Estava alegre, animada com as conversas, ainda que duas taças de vinho tivessem contribuído para um certo estupor. Amigas ao redor, falavam, riam, gargalhavam, saltitavam como se fossem menininhas adolescentes. A jovialidade era notória, algo que transparecia de seu belo rosto, e o clima de camaradagem contribuía para enfeitar a noite estrelada e as luzes a pontilhar a Av. Atlântica.

Ao chegar ao Posto 6, um pequeno aglomerado de turistas alternava-se ao lado da estátua de Drummond sentado placidamente, de pernas cruzadas, mãos sobre as pernas, qual bom mineiro paciente e atento a cada foto, a cada palavra, a cada larápio que surrupiava seus óculos, a cada ouvinte que lhe pedia um conselho, a cada iletrado que não o conhecia.

Ela não hesitou, não se envergonhou. Sentou-se ao lado de mestre itabirano e puxou um fio de prosa. Gesticulava, sorria, ouvia atentamente, quase hipnotizada pelo que parecia ser uma conversa real.

- E então, conte-me, o que o poeta lhe disse? - indagou a amiga em tom de galhofa após registrar o momento numa foto.

- Ouça o vento. Dance ao som das ondas do mar. Voe com as borboletas. Sinta a vibração da floresta, abrace as árvores, agarre a vida. Inspire o aroma da primavera, da maresia. Delicie-se com os sabores do amor, do beijo, do abraço. Olhe para o céu, para a lua, para as estrelas. Sonhe. Viva. Ame. Ria. Transgrida. Deixe-se levar pelo ímpeto, enfrente a correnteza, aventure-se. Ah, e tem mais uma coisa moça bonita: diga para sua amiga que poetas falam, mesmo depois de muito tempo, quer com palavras, quer sejam estátuas. Se você não acredita, pergunte ao poeta!

(5 de setembro de 2013)

domingo, 10 de novembro de 2013

Barcarola, de Vinicius de Moraes



BARCAROLA
Vinicius de Moraes 


Parti-me, trágico, ao meio
De mim mesmo, na paixão.
A amiga mostrou-me o seio
Como uma consolação.

Dormi-lhe no peito frio
De um sono sem sonhos, mas
A carne no desvario
Da manhã, roubou-me a paz.

Fugi, temeroso, ao gesto
Do seu receio modesto
E cálido; enfim, depois

Pensando a vida adiante
Vi o remorso distante
Desse crime de nós dois.

(As Coisas do Alto. São Paulo : Companhia das Letras, 1993, p. 113)