terça-feira, 19 de março de 2013

O primeiro dia frio


Tenho uma grande simpatia por Lygia Fagundes Telles e Tatiana Salem Levy. São duas escritoras que me agradam em demasia. Na edição de sexta-feira, dia 15 de março, a primeira foi a convidada da coluna À Mesa com Valor, que teve o encontro relatado por José Castello, cujos textos são um convite a sentar-se à mesa com o convidado. Há uma proximidade do entrevistado, uma intimidade recheada de notas e frases que permitem ao leitor penetrar um pouco no processo criativo do escritor (quando entrevistado é um escritor). A coluna pode ser lida aqui.

Destaco dois trechos do que foi dito por Lygia Fagundes Telles: "É preciso enxergar mais do que as coisas nos mostram, ou não vemos nada." E mais adiante afirma que "está tudo inscrito na realidade. A um escritor, basta ler. Não sei por que gostam de atacar a realidade."

Em certo trecho, Lygia narra como surgiu o conto Helga, de Antes do Baile Verde. De uma notícia de jornal, de uma sugestão do marido, o caso narrado transmuda-se em conto de ficção. A realidade é contada pelo escritor com novas cores, mas sem deixar de ser real. A realidade é fonte de inspiração, é o ponto de partida de escritor, na visão de Lygia. 

Descobri Lygia lendo Conspiração de Nuvens (2007). A memória é um elemento muito presente em suas crônicas, servindo-lhe de matéria prima para analisar a realidade que procura enxergar de esguelha, com outro viés daqueles que a olham somente como plana. Encantei-me com o livro, com os textos e com esta grande escritora. Apaixonei-me pela forma como ela trata de um tema que me é tão caro: a memória. 

E minha alegria aumentou quando no final do caderno de final de semana do Valor deparei-me com um ensaio de Tatiana Salem Levy sobre um livro de Sándor Márai, De Verdade (Companhia das Letras, 2008), em que ela discute a existência de múltiplas verdades (leia aqui). Tatiana lança a pergunta: existe amor de verdade? existe mulher de verdade?

A discussão acerca da existência de uma única verdade ou de múltiplas verdades é muito familiar para um advogado. No direito penal, busca-se a verdade material, que deveria ser a real, ou seja, aquela que retrata o que efetivamente aconteceu a ponto de se poder condenar aquele que praticou o delito. No direito civil, prevalece a verdade formal, aquela que está presente nos autos, aquela pela qual o magistrado é convencido a acreditar com base nas versões e provas apresentadas.

Ressalvo que, do ponto de vista filosófico, discordo da afirmação de que existem múltiplas verdades no plano metafísico e do conhecimento, mas não vou me desviar do assunto principal que é a literatura.

Versões e pontos de vista é o que Márai traz para sua narrativa. Discordo de Tatiana de que há múltiplas verdades; há múltiplas versões da realidade, contadas pela ótica do observador e pelo critério do observador, geralmente tomados de parcialidade na sua análise. Mas Tatiana destaca que todos narram após os acontecimentos, ou seja, no passado, revivendo a memória do outro ou como o outro era visto no momento em que os fatos ocorreram. A memória pode ser traiçoeira, nebulosa!

A memória, com as experiências colhidas no passado, agrega ao conhecimento do momento presente, deixando-o mais claro e mais profundo, como se fossem camadas do solo que vão se sobrepondo. Um corte lateral permite conhecer o presente e o passado.

Após um verão quente, somos brindados com um dia frio em São Paulo, o primeira dia frio do ano. E todos saem agasalhados na rua, com cachecóis, casacos e botas. Parece um dia de inverno, mas temperatura é de agradáveis 19o C. Nosso corpo, acostumado com o calor, ainda traz a memória térmica dos dias de verão, e a temperatura amena, parece-nos mais fria do que realmente é do ponto de vista objetivo.

Eis que me deparo com uma segunda-feira fria, garoenta, úmida. Um aparente típico dia de invernopaulistano! Mas calma, meu querido amigo, não se precipite, ainda estamos no verão, nos estertores do verão, ainda na estação do astro rei. Hoje foi o primeiro dia de frio do ano. Comentei com minha filha que o que é cinza e melancólico para alguns, pode ser poético para outros, basta ler a realidade. O primeiro dia frio do ano parece convidar ao aconchego do lar, a saborear memórias, a enclausurar-se no silêncio interior, a degustar uma taça de vinho, a preparar uma sopa quentinha, a enrolar-se no cobertor... O primeiro dia frio do ano não precisa ser negro, nem o presságio de uma estação terrível e pouco tolerável. Prefiro o calor, mas cada estação tem suas qualidades, sua inspiração, sua cor. Basta ler a realidade, como nos ensina Lygia Fagundes Telles.

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