ENTRE CORPOS
O ônibus não estava lotado naquela manhã, igual a todas as
outras. Passageiros se alinhavam de forma assimétrica diante de mim, ao
percorrer com os olhos a massa humana, fui arrebatado por algo inusitado. Entre
braços e corpos, formava-se um espaço onde podia avistar um pescoço longilíneo,
delicado, que desaparecia numa cortina de cabelos loiros. Lembrei-me de Rodin e
de seus estudos das partes do corpo. Aquele pescoço seria um modelo perfeito
para uma escultura do mestre francês. Como abelha atraída por uma bela flor
repleta de pólen, vi-me abobalhado a admirar aquela obra de arte em forma
humana. Confesso que alguns pensamentos mais sensuais me cruzaram a mente, mas
aquele não era o lugar para ter estas vibrações. Era sensual, sim, não havia
dúvida, mas desde quando um pescoço se tornara algo sensual para mim? Achei
divertida aquela reflexão sem tirar os olhos do pescoço da bela moça.
A gola branca, de blusa discreta, realçava a pele amorenada
que não escondia algumas pintas e uma pequena marca de nascença em forma de
meia lua, bem clara, quase imperceptível. Meu olhar aguçado não poderia deixar
desenhar estrelas naquelas pintas que dançavam ao redor da lua. Dois colares
com correntes finas e douradas acariciavam o entorno do pescoço e repousavam
sobre o colo. Alguns fios de cabelo escondiam o que seria um alvo predileto de
um vampiro, que se refestelaria com uma larga mordida, a transformar a bela
moça em sua seguidora noturna. Seria eu um vampiro que agora despertava diante
daquele pescoço que me atraía de forma estranha e inexplicável? Teria eu algum
sangue de antepassado vindo da Transilvânia ou aparentado do Conde Drácula? Ou
seria algum personagem daquela série de livros de adolescentes vampiros Crepúsculo?
Quase ri alto com tanta besteira a rondar minha mente com pensamentos
desconexos.
Mas afinal, entre aqueles braços e corpos, só conseguia
avistar o pescoço, um pedaço da orelha que não estava coberta pelos fios loiros
e uma leve curvatura do maxilar a iniciar o desenho da face. Ela parecia
hipnotizada pelo celular, totalmente alheia à minha presença e meu olhar fixo.
Meu interesse passava despercebido. Quando chegou minha hora de descer do
ônibus, lancei um olhar acrescido de um sorriso terno, mas ela me ignorou. Quem
sabe amanhã, tomaria o mesmo ônibus. Quem sabe amanhã, poderia perguntar seu
nome. Quem sabe amanhã, ela me olharia nos olhos.