quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Conto: Entre corpos

 



ENTRE CORPOS


O ônibus não estava lotado naquela manhã, igual a todas as outras. Passageiros se alinhavam de forma assimétrica diante de mim, ao percorrer com os olhos a massa humana, fui arrebatado por algo inusitado. Entre braços e corpos, formava-se um espaço onde podia avistar um pescoço longilíneo, delicado, que desaparecia numa cortina de cabelos loiros. Lembrei-me de Rodin e de seus estudos das partes do corpo. Aquele pescoço seria um modelo perfeito para uma escultura do mestre francês. Como abelha atraída por uma bela flor repleta de pólen, vi-me abobalhado a admirar aquela obra de arte em forma humana. Confesso que alguns pensamentos mais sensuais me cruzaram a mente, mas aquele não era o lugar para ter estas vibrações. Era sensual, sim, não havia dúvida, mas desde quando um pescoço se tornara algo sensual para mim? Achei divertida aquela reflexão sem tirar os olhos do pescoço da bela moça.

 

A gola branca, de blusa discreta, realçava a pele amorenada que não escondia algumas pintas e uma pequena marca de nascença em forma de meia lua, bem clara, quase imperceptível. Meu olhar aguçado não poderia deixar desenhar estrelas naquelas pintas que dançavam ao redor da lua. Dois colares com correntes finas e douradas acariciavam o entorno do pescoço e repousavam sobre o colo. Alguns fios de cabelo escondiam o que seria um alvo predileto de um vampiro, que se refestelaria com uma larga mordida, a transformar a bela moça em sua seguidora noturna. Seria eu um vampiro que agora despertava diante daquele pescoço que me atraía de forma estranha e inexplicável? Teria eu algum sangue de antepassado vindo da Transilvânia ou aparentado do Conde Drácula? Ou seria algum personagem daquela série de livros de adolescentes vampiros Crepúsculo? Quase ri alto com tanta besteira a rondar minha mente com pensamentos desconexos.

 

Mas afinal, entre aqueles braços e corpos, só conseguia avistar o pescoço, um pedaço da orelha que não estava coberta pelos fios loiros e uma leve curvatura do maxilar a iniciar o desenho da face. Ela parecia hipnotizada pelo celular, totalmente alheia à minha presença e meu olhar fixo. Meu interesse passava despercebido. Quando chegou minha hora de descer do ônibus, lancei um olhar acrescido de um sorriso terno, mas ela me ignorou. Quem sabe amanhã, tomaria o mesmo ônibus. Quem sabe amanhã, poderia perguntar seu nome. Quem sabe amanhã, ela me olharia nos olhos.