segunda-feira, 29 de junho de 2020

Apagaram os sorrisos






Veio a pandemia e decretaram uma longa quarentena. Era para ser por quinze dias, depois mais quinze, viraram 60, adicionaram mais um mês e o pico parecia inalcançável. Até hoje acho que ainda não chegamos lá, mas resolveram que já era hora de permitir um afrouxamento, um lento despertar da cidade adormecida.

O período de hibernação dos ursos deve ser assim, salta-se do carnaval para as férias de julho, sem Páscoa e sem festa junina, e adicione alguns feriados que foram devorados pelo vírus por decisões políticas. Transitar por São Paulo, após escurecer, é como caminhar por uma cidade semideserta, quase fantasma, com ar soturno, tristonho. O trânsito evaporou, não há carros, não há pessoas, não há ruídos. O silêncio impera e traz à memória uma cidade de interior, pacata, tranquila, silenciosa.

Aos poucos, há uma reabertura. Pessoas voltam a circular pelas ruas ao longo do dia, mas há algo de diferente. Apagaram os sorrisos. Olhe para a foto de um rosto e cubra a parte abaixo do nariz e o queixo. É praticamente impossível dizer se a pessoa está sorrindo, se a pessoa está triste, se a pessoa está nervosa. Perde-se a expressão quando escondem a nossa boca por detrás de uma máscara.

Não estou aqui a me revoltar contra as máscaras, apenas constato que os sorrisos deixaram de habitar a cidade. Continuam escondidos em quarentena dentro das casas e dos ambientes seguros. A partir de agora, não se pode mais cumprimentar o porteiro ou uma pessoa na rua com um singelo sorriso e um aceno de cabeça. O aceno de cabeça ficou capenga, órfão de um elemento fundamental que é a expressão labial. Vamos ter que aprender a ler olhares, a atentar para as pequenas oscilações do canto dos olhos, das sobrancelhas, do nariz, da testa franzida. A percepção será outra, pois a boca se esconde.

Primeiro, o coronavírus roubou-nos o tempo e a liberdade. Agora, o coronavírus apaga os sorrisos de nossos rostos.


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Sons da quarentena




O céu cinza de um domingo de outono dá um tom melancólico, quase soturno, a mais este dia de quarentena. Uma garoa cai silenciosa e umedece a rua sem tráfego. O silêncio, da cidade adormecida pela pandemia e pela obrigação de ficar em casa, é quebrado pelo latido de alguns cães nas casas ao redor do prédio. Não se ouve o barulho dos carros, nem das motos dos entregadores de comida. O vento assobia de tempos em tempos pelas frestas da porta, batendo uma janela, balançando as folhas das árvores e agitando as flores rosáceas do ipê. Hoje, o final de tarde não será anunciado pela algazarra do bando de maritacas que surge em revoada antes do sol repousar.

 

Os sons da pauliceia mudaram com a pandemia. Há um clima de cidade pequena, de cidade do interior, onde os sons são mais naturais, mais ligados aos eventos da natureza. A chuva que cai no telhado, a batida oca de uma fruta que cai do pé e se acomoda no chão de terra batida, o portão da casa que bate ao ser fechado, o grito de quem chega e bate palma perguntado se há alguém na casa, crianças correndo na rua. A sonoridade da cidade pequena, da cidade acolhedora e familiar, é muito diferente da sinfonia pouco harmoniosa da cidade grande.

 

Outro dia, passava pela avenida Paulista, no meio de uma manhã de dia útil. O semáforo estava verde para os carros, mas não havia carros. Olhei e iniciei a travessia. Cheguei ao canteiro central e do outro lado também os carros estavam ausentes. A cidade marcha em câmara lenta, quase sem ruído, silenciosa, adormecida.

 

Continuei a caminhada até o escritório atentando para os sons. Nenhuma sirene, nenhum camelô anunciando seus produtos, nenhuma conversa de porta de bar, nenhuma pessoa varrendo a calçada, nenhum caminhão fazendo entregas. O silêncio imperava.

 

Deixei minha memória auditiva retornar para a infância, quando as brincadeiras na casa de minha avó eram interrompidas pela buzina do carrinho de sorvete, ou da música instrumental do realejo, da batida seca na tábua do vendedor de biju, do assobio longo do amolador de facas. Uma sinfonia urbana levada pelo tempo e que deixou saudades.

 

E a quarentena, seus sons deixarão saudades? Ou seria a ausência de sons que deixarão saudades? Será que sentimos saudades da sonoridade tão urbana da metrópole em pleno funcionamento?

 

Não me refiro à multiplicação de shows de música em canais de internet e na TV, nem na proliferação de lives, mas daqueles ruídos que quebram o silêncio e ativam nossa memória auditiva. Não me detenho sobre as músicas que tem a capacidade de nos transportar imediatamente para um lugar distante no passado, um momento preciso e exato na vida de cada um, na capacidade de arrepiar a pele ou de provocar olhos marejados.

 

Quero que repare nos sons ao seu redor. Quero convidá-lo, meu amigo leitor, a perceber a sonoridade que o cerca. Abra a janela de sua casa, feche os olhos e escute. Apenas escute. O que mudou nesta quarentena? Algo mudou. A trilha sonora da pauliceia mudou. Hoje, o dia termina silencioso e acinzentado e nem as maritacas saíram de seus abrigos para anunciar o fim do dia com a algazarra do bando. A minha quarentena deixará na memória a quase diária sinfonia dissonante das maritacas.