segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Conto: Um domingo qualquer


Dia branco, by @missuniversoproprio

UM DOMINGO QUALQUER


O sol adentrava pela janela da sala, ainda tímido, naquela manhã fria de final de inverno paulistano. Com uma xícara de café, daquelas grandes, sentou-se na poltrona ao lado do sofá, esticando as belas pernas e apoiando-as sobre a mesa de centro. Contemplava os raios que penetravam pela janela, invadindo seu espaço privado. Segurou a xícara com as duas mãos, aproveitando o calor da porcelana azul. Uma das cachorras aproximou-se e apoiou a cabeça sobre sua coxa, pedindo um carinho matinal.

Bebericou o café, levantou-se, abriu a porta da varanda e ficou a ouvir o ruído tranquilo e preguiçoso da manhã de domingo. Não havia carros, ônibus, motos ou qualquer outro barulho de veículo motorizado, apenas uma leve brisa a criar um rebuliço nas folhas das árvores da praça em frente. Alguns poucos pássaros se agitavam entre as folhas e a cidade ganhava contornos de cidade de interior, onde prevalecia apenas o cantar da natureza. Achou estranho o silêncio, mas percebeu um certo reconforto, um acolhimento tranquilizador da metrópole. Sentiu frio nos pés descalços e voltou a entrar.

A cada novo dia a esperança renasce no ser, no viver. Um vestido plúmbeo de alça fina caiu-lhe bem. Era discreto o suficiente para não chamar atenção, mas permitia realçar suas qualidades físicas, perceptíveis ao olhar mais atento.  Acendeu um cigarro e deu uma longa tragada. Não era um vício, mas um prazer solitário que mantinha desde os tempos de faculdade. Gostava de fumar e se divertia com as piruetas da fumaça subindo da ponta do cigarro em brasa. Era um momento só dela, onde vasculhava seu interior e refletia. Em tempos de exclusão de fumantes, sua casa era um refúgio onde podia fumar sem reprimendas ou olhares tortos e condenatórios, onde podia caminhar nua pelos cômodos sem olhares indiscretos de vizinhos, onde ouvia as músicas que gostava e lhe davam energia para enfrentar cada dia.

Naquela manhã, não havia música no interior do apartamento, apenas o silêncio. Quando estava compenetrada, sua beleza era mais notada. Os olhos traziam consigo uma força inquebrável, não como um super-herói de filme da Marvel em que um raio destruidor está prestes a brotar dos olhos da heroína, mas se assemelhavam a de uma esfinge que nos convida a decifrá-la, se é que é possível decifrar o pensamento e o âmago de uma mulher.

Apagou o cigarro, amarrou um lenço de seda no pescoço, checou a bolsa, pegou o celular e hesitou. Estava na hora de ir, mas sentiu medo. As mãos estavam geladas. Respirou fundo e deu um passo em direção à porta. Não era possível mais adiar aquela conversa. A amiga não imaginava o assunto, mas ela precisava falar e derramar sobre a mesa tudo que sabia. Guardar para si o que tinha visto tornara-se sufocante, um peso impossível de carregar. Precisava dar vazão a tudo que estava retido, mesmo que pudesse custar a longa amizade. Abriu a porta e chamou o elevador.