quarta-feira, 23 de maio de 2018

Conto: Aquário, câncer




CONTO:  AQUÁRIO, CÂNCER


Pouco depois das 7 e meia da manhã achei uma vaga no Starbucks do Itaim. Algo raro e imaginei encontrar a loja vazia, afinal ainda era cedo. Ao abrir a porta, uma fila razoável e dois motoboys de serviços de entrega de comida por aplicativo se enfileiravam diante do caixa. Pensei comigo, quem pede um Frapuccino via aplicativo às 7 e meia da manhã?, seria preguiça de sair de casa ou a realidade de eremitas que não desgrudam de seus aparelhinhos e preferem degustar sua bebida em casa, longe de olhares estranhos e do convívio social? Seriam estas imensas janelas, tão generosas na iluminação natural, a dar a sensação de um enorme aquário onde seres humanos substituem os mais diversos peixes ornamentais?

Uma certa irritação começou a me dominar, porém hoje era um dia daqueles em que as irritações do cotidiano seriam solenemente desprezadas. Tinha algo muito mais sério a dominar meus pensamentos. Pensei em ir embora, dar meia volta, mas respirei fundo e voltei a ser absorvido pela efemeridade de momentos corriqueiros. Distraí-me observando os que estavam na minha frente e tentando descobrir o que se passava naquelas mentes.

No caixa, uma adolescente com uniforme de escola inglesa, saia xadrez, camisa de gola e botões na parte dianteira e uma fina gravata listrada pendurada no pescoço sem qualquer cuidado com o nó. A senha do cartão não funcionou. Ela chamou a irmã. Nova tentativa no cartão. Sem êxito. A irmã tirou uma nota de cinquenta e pagou. A atendente se atrapalhou com o troco. Perguntou se o pão de queijo era normal ou integral. A simplicidade da vida agora era atacada por opções e variantes sobre o mesmo tema. O leite podia ser de soja, integral ou desnatado. O pão de queijo integral ou tradicional. O açúcar também tinha suas variações: mascavo, orgânico, cristal. Isto sem mencionar o adoçante em gotas ou em pó.

A cliente seguinte foi mais rápida, assim como o motoboy do aplicativo. Quando chegou minha vez, já havia desistido do pão de queijo e queria apenas um café espresso. Seu nome?, veio a pergunta habitual. E eu, como de costume, inventei um: Heitor. Sempre escolho um nome diferente e fora do comum só para me divertir com o atendente escrevendo o que ouviu no copo ou no papelzinho.

Passei para o canto da loja e continuei observando os que estavam na minha frente, como se fosse um espião ou agente secreto. Uma moça de pele clara, cabelos escorridos, unhas cortadas bem curtas e sem esmalte. Deveria ser engenheira ou da área de TI. Pelo jeito não era vaidosa e não trabalhava em uma empresa ou cargo que exigisse um pouco mais de cuidado pessoal. Não era desleixada, nem feia, mas pelo visto não prezava tanto a aparência. Talvez estivesse de férias. No antebraço uma discretíssima tatuagem, um risco fino e contínuo que contornava todo o braço, dando a impressão de que seu braço havia sido cortado por uma fina lâmina de metal. Ou poderia ser apenas um risco de caneta bem fina. Mayara era o nome dela. O nome não combinava com a pessoa.

Bruno, gritou a moça com um copo na mão e o motoboy se apresentou para retirar dois Frapuccinos, um de chocolate e outro de café. Pediu um suporte de papelão para segurar os copos. Soltou um valeu e partiu para seu destino. A menina da escola inglesa ainda aguardava seu pedido. Parecia impaciente. Atrás de mim três jovens de seus vinte e pouco anos, típicos representantes da geração millenials, no vestir-se e no falar, computador a tiracolo, insistiam em falar sobre a importância de ser agressivos nesse mercado – não sei qual – e em contar com um sujeito que manje muito de finanças. Falavam mais alto que os demais, a conversa animada, qualquer um diria que já haviam tomado uma jarra de café.

O mundo para um millenial ainda é pequeno, um início de caminhada, uma dimensão a ser explorada e conquistada com um aplicativo – ou vários aplicativos – que fosse disruptivo e transformasse a forma de fazer negócio, de se viver, de pedir um café pela manhã ou de saber quanto você gasta com gasolina no final do mês, tudo organizado numa planilha.

Não ri, mas senti um pouco de pena da ingenuidade destes jovens que desprezam o tempo com arrogância, como se fosse algo reutilizável, reciclável. O tempo se esvai rápido e depois que o segundo do relógio passa, ele não volta jamais. “Etor”, gritou a moça informando que meu café estava pronto, achando que era um nome inspirado em algum personagem da Marvel. Açúcar, uma rápida mexida e o café morno foi consumido. Sai da loja ainda me divertindo com o pequeno espetáculo e as pequenas preocupações daqueles personagens. Passei por eles como o homem invisível, sem ser notado. Não me importei. A única coisa que me importava naquela manhã era que haviam descoberto um novo câncer no estômago de meu pai. E a batalha pela vida recomeçava.