CONTO: AQUÁRIO, CÂNCER
Pouco depois das 7 e meia da manhã achei uma vaga no
Starbucks do Itaim. Algo raro e imaginei encontrar a loja vazia, afinal ainda
era cedo. Ao abrir a porta, uma fila razoável e dois motoboys de serviços de
entrega de comida por aplicativo se enfileiravam diante do caixa. Pensei
comigo, quem pede um Frapuccino via aplicativo às 7 e meia da manhã?, seria
preguiça de sair de casa ou a realidade de eremitas que não desgrudam de seus
aparelhinhos e preferem degustar sua bebida em casa, longe de olhares estranhos
e do convívio social? Seriam estas imensas janelas, tão generosas na iluminação
natural, a dar a sensação de um enorme aquário onde seres humanos substituem os
mais diversos peixes ornamentais?
Uma certa irritação começou a me dominar, porém hoje era um
dia daqueles em que as irritações do cotidiano seriam solenemente desprezadas.
Tinha algo muito mais sério a dominar meus pensamentos. Pensei em ir embora,
dar meia volta, mas respirei fundo e voltei a ser absorvido pela efemeridade de
momentos corriqueiros. Distraí-me observando os que estavam na minha frente e
tentando descobrir o que se passava naquelas mentes.
No caixa, uma adolescente com uniforme de escola inglesa,
saia xadrez, camisa de gola e botões na parte dianteira e uma fina gravata
listrada pendurada no pescoço sem qualquer cuidado com o nó. A senha do cartão
não funcionou. Ela chamou a irmã. Nova tentativa no cartão. Sem êxito. A irmã
tirou uma nota de cinquenta e pagou. A atendente se atrapalhou com o troco. Perguntou
se o pão de queijo era normal ou integral. A simplicidade da vida agora era
atacada por opções e variantes sobre o mesmo tema. O leite podia ser de soja,
integral ou desnatado. O pão de queijo integral ou tradicional. O açúcar também
tinha suas variações: mascavo, orgânico, cristal. Isto sem mencionar o adoçante
em gotas ou em pó.
A cliente seguinte foi mais rápida, assim como o motoboy do
aplicativo. Quando chegou minha vez, já havia desistido do pão de queijo e
queria apenas um café espresso. Seu nome?, veio a pergunta habitual. E eu, como
de costume, inventei um: Heitor. Sempre escolho um nome diferente e fora do
comum só para me divertir com o atendente escrevendo o que ouviu no copo ou no
papelzinho.
Passei para o canto da loja e continuei observando os que
estavam na minha frente, como se fosse um espião ou agente secreto. Uma moça de
pele clara, cabelos escorridos, unhas cortadas bem curtas e sem esmalte.
Deveria ser engenheira ou da área de TI. Pelo jeito não era vaidosa e não
trabalhava em uma empresa ou cargo que exigisse um pouco mais de cuidado
pessoal. Não era desleixada, nem feia, mas pelo visto não prezava tanto a aparência.
Talvez estivesse de férias. No antebraço uma discretíssima tatuagem, um risco
fino e contínuo que contornava todo o braço, dando a impressão de que seu braço
havia sido cortado por uma fina lâmina de metal. Ou poderia ser apenas um risco
de caneta bem fina. Mayara era o nome dela. O nome não combinava com a pessoa.
Bruno, gritou a moça com um copo na mão e o motoboy se
apresentou para retirar dois Frapuccinos, um de chocolate e outro de café.
Pediu um suporte de papelão para segurar os copos. Soltou um valeu e partiu
para seu destino. A menina da escola inglesa ainda aguardava seu pedido. Parecia
impaciente. Atrás de mim três jovens de seus vinte e pouco anos, típicos
representantes da geração millenials, no vestir-se e no falar, computador a
tiracolo, insistiam em falar sobre a importância de ser agressivos nesse
mercado – não sei qual – e em contar com um sujeito que manje muito de
finanças. Falavam mais alto que os demais, a conversa animada, qualquer um
diria que já haviam tomado uma jarra de café.
O mundo para um millenial ainda é pequeno, um início de
caminhada, uma dimensão a ser explorada e conquistada com um aplicativo – ou
vários aplicativos – que fosse disruptivo e transformasse a forma de fazer
negócio, de se viver, de pedir um café pela manhã ou de saber quanto você gasta
com gasolina no final do mês, tudo organizado numa planilha.
Não ri, mas senti um pouco de pena da ingenuidade destes
jovens que desprezam o tempo com arrogância, como se fosse algo reutilizável,
reciclável. O tempo se esvai rápido e depois que o segundo do relógio passa,
ele não volta jamais. “Etor”, gritou a moça informando que meu café estava
pronto, achando que era um nome inspirado em algum personagem da Marvel.
Açúcar, uma rápida mexida e o café morno foi consumido. Sai da loja ainda me
divertindo com o pequeno espetáculo e as pequenas preocupações daqueles
personagens. Passei por eles como o homem invisível, sem ser notado. Não me
importei. A única coisa que me importava naquela manhã era que haviam
descoberto um novo câncer no estômago de meu pai. E a batalha pela vida recomeçava.