Nos encontros, sempre é mais feliz aquele que ama mais. Valorize os encontros. Valorize o tempo. Valorize o presente.
Nos encontros, sempre é mais feliz aquele que ama mais. Valorize os encontros. Valorize o tempo. Valorize o presente.
Praça Vinicius de Moraes - @rbueloni |
Se no dia de hoje no ano de 2019, alguém dissesse que no ano seguinte
estaríamos todos trancafiados em casa, isolados, temerosos de andar na rua e de
qualquer contato social, teria sido rotulado como uma bela pegadinha do dia da
mentira.
O filósofo coreano Byung-Chul Han inicia o seu Sociedade do
Cansaço (2014) afirmando que o desenvolvimento tecnológico afastara o risco de
uma pandemia, pois havíamos dominado a fabricação de remédios capazes de evitar
o alastramento de doenças em escala global. Ledo engano.
Em 20 de março de 2020, iniciamos uma quarentena no Brasil e
o mundo ficou paralisado por causa da Covid-19. Uma pandemia que interrompeu o
comércio internacional, as viagens, esvaziou escritórios e obrigou-nos a ficar em
casa, isolados em nossas celas e o silêncio tomou conta das cidades. Alguns
achavam que era o apocalipse, outros ficaram indiferentes e riam da “gripezinha”.
Muitos morreram. Outros tiveram sequelas. Os serviços de saúde ficaram
sobrecarregados até que se encontrou uma vacina e um possível protocolo de
tratamento.
O que mais me marcou naqueles dias de isolamento foi o silêncio.
A forma como a sonoridade da cidade mudou de forma radical.
Outro dia, caminhando na Praça Vinicius de Moraes num sábado
pela manhã, ouvi o canto de algumas cigarras. Uma memória afetiva da infância
no sítio me transportou de volta para os anos 1980. Grilos, latidos de cachorros,
sapos coaxando, o relincho de um cavalo, um galo a cantar. Sons do interior, trilha
sonora de roça, mas que tanto acalma o íntimo. Um convite para desacelerar e apenas
ouvir os ruídos deitado numa rede ou sentado no gramado.
Tenho para mim que as pessoas não se atentam muito para os sons,
para os ruídos da cidade grande. São Paulo é barulhenta, mas aqui no escritório,
desfrutamos de um silêncio quase monástico em alguns dias quando o telefone dá
uma trégua e passamos o dia trabalhando em silêncio. Sim, hoje em dia, pode-se
dizer que o trabalho do advogado é silencioso. O silêncio que é interrompido
apenas pelo dedilhar das teclas no computador. Até meu celular fica sempre em
modo silencioso. Aprecio o silêncio e deixo-me levar. O silêncio inspira, acalma,
convida-me a conversar com Deus. O silêncio é a porta de entrada para a vida
interior, para os recantos da alma.
Não tenho saudades da pandemia e nem do isolamento, mas a
pandemia deixou como fruto positivo a redescoberta do silêncio. Talvez não a
redescoberta, mas o contraste entre o silêncio e a agitada rotina paulistana.
Um contraste que exige atenção para ser percebido, um contraste que pede
sensibilidade, pois é sutil e passa despercebido pela grande maioria das pessoas
que caminham neste imenso formigueiro que é a pauliceia.
The bridge at Herndon, Virginia - @rbueloni
ESQUECIDA
Eu me chateio. Ainda. Talvez não
devesse mais, após 32 anos, mas eu havia pedido para tirar a calça de cima da
cama antes dela deitar e apagar a luz do quarto. Era um pedido singelo,
objetivo, direto. Bastava pendurar a calça no cabide ou deixá-la sobre a
cadeira no canto do quarto. Mas ela ignorou meu pedido. Passou em branco.
Aquele momento onde o ignorar se confunde com o esquecer e transforma-te em um
ser invisível. Muita coisa passava em branco e cada vez com maior frequência.
Pedia para comprar pasta de dente no
supermercado, ela esquecia. Pedia para pegar dinheiro no caixa eletrônico, ela
esquecia. Perguntava se podíamos jantar com amigos, ela esquecia que iria
trabalhar. E assim os dias se seguiram, um após o outro. Não me irritava, mas
apenas me chateava e notava o esquecimento que recaía sobre mim. Estava sendo
esquecido, abandonado, pedacinho por pedacinho, qual um navio de partida que se
afasta do porto e a praia vai diminuindo de tamanho até que o horizonte se
confunde com a imensidão do mar.
Um dia, levei-a ao médico.
Desconfiava que aquele esquecimento pudesse ser algo a mais. Não deixei que
fosse sozinha e marquei a consulta. Alguns exames e dias depois, veio o
diagnóstico de Alzheimer em fase inicial. Ela estava se esquecendo da vida.
Fenway Park - @rbueloni |
Caminhava no último sábado pela manhã numa praça perto de casa
para fazer um pouco de exercício ao som de uma playlist que tenho no Spotify e
que chamei de Midland Times (ou “tempos de Midland”). Midland é uma pequena
cidade no meio do estado de Michigan, no norte dos Estados Unidos, onde residi
por 4 anos. As músicas dos anos 1980 que compõem a lista me levaram de volta àquela
pacata cidade do meio-oeste americano. Dei-me conta que no dia 31 fará exatos
40 anos que me mudei para lá, com 13 anos, falando um inglês macarrônico e
débil, sem ter ideia do que iria encontrar.
Ao som de Billy Joel cantando River of Dreams, lembrei-me dos bons tempos da adolescência. Aquela música poderia ecoar do rádio do carro num dia de verão, onde Tom, Homer, Brian e eu íamos para tomar um sorvete no Baskin Robbins ou um slurpee no 7Eleven. E depois, passávamos horas conversando, ouvindo música, andando de bicicleta, vendo jogos de baseball e torcendo pelos Detroit Tigers.
Os dias de verão eram longos e quentes. Os dias de inverno muito frios, cheios de neve escuros e curtos. Mas a amizade construída naqueles anos perdurou e se manteve viva. Enquanto caminhava, relembrava do que aprendi na adolescência vivida numa cidade interiorana americana. Era eu um forasteiro, um estrangeiro. Senti o preconceito, a discriminação, os estereótipos aplicados a quem não é popular e quem não é atleta. Fui provocado a tomar decisões, a amadurecer, a escolher um rumo para a minha vida. Optei por dedicar-me aos estudos e com isso garantir uma vaga num processo seletivo de uma universidade de alto nível nos Estados Unidos. Era bom aluno e por isso ganhava a pecha de nerd, o que lhe incluía numa categoria social que impossibilitava sair com as meninas mais bonitas e populares.
Quarenta anos se passaram! Continuo vivo, mas sei que a cada
dia que passa aproximo-me do fim. Gosto de refletir sobre o fim no dia de
finados. Gosto de celebrar cada novo dia de vida que me é presenteado. Juntei
nestes dias a nostalgia que me alegrou engatilhada pela música que despertou
milhares de memórias, sorrisos, abraços, despedidas e momentos únicos, com a lembrança daqueles tempos de adolescente.
A nostalgia só me traz a certeza de que a cada novo dia, a gratidão aumenta.
PS: Não esqueça de fazer uma oração por aquele ente querido neste dia de finados. Não esqueçamos daqueles que se foram, mas que continuam vivos em nossos corações.
by Renato Bueloni Ferreira |
Sento-me às margens do rio Odra, numa tarde agradável de domingo de primavera, e tento imaginar como era a vida na Polônia durante o regime soviético.
As novas gerações têm a liberdade, algo inexistente naquela época. As novas gerações têm seus celulares, a comunicação livre com o mundo. As novas gerações têm acesso a uma universidade aberta, a programas de intercâmbio, a viajar pela Europa e explorar novos destinos.
É domingo, os sinos das igrejas badalam e as pessoas vão à missa. Avisto vários campanários de igrejas em estilo gótico, mas de tijolos à vista. As paredes externas são marrons, uma cor terrosa escura, mais sóbria e sisuda do que no sul da Europa.
Casais passeiam com crianças pequenas, há risos, jovens conversando e olhando seus celulares. Uma mulher lê algo em um Kindle. Um grupo de jovens controla um pequeno drone sobre o rio. A cidade medieval de Wroclaw abraçou a modernidade e a tecnologia sem esquecer do passado.
E como foi o passado?
Quase não há sinais do período soviético. Deparei-me com um conjunto habitacional acinzentado, quadrado, decaído que me lembrou 1984, de George Orwell. A vida devia ser triste, melancólica, sem esperança, com falta de comida, de dinheiro, de energia. A vida era controlada pelo Estado, a vida era dirigida pelo Estado, a vida era traçada pelo Estado, como um roteiro de filme onde o bom cidadão sobrevive. Entenda-se por “bom cidadão" aquele que segue as regras e se deixa escravizar pelo Estado, aquele que não critica, aquele que incensa o líder supremo.
Os mais velhos, que vivenciaram o terror, não hesitaram em dar apoio à Ucrânia e a acolher os refugiados. Os mais velhos têm a memória viva do que é perder a liberdade.
Que este terror jamais volte!
Em tempos de tentativa de regulamentação das redes sociais, que a voz jamais seja calada, que a liberdade de opinião e de expressão continue a reinar como direito fundamental do cidadão, que o Brasil não enverede pelos negros caminhos da censura.
@rbueloni - instagram |
Por vezes, vens me visitar na alta noite
no silêncio do sonho das madrugadas.
Alguns intensos, outros serenos e plácidos,
alguns sem sentido, outros a revelar verdades
marcantes e ao despertar,
o intenso batuque na caixa torácica
o arrepio latente, o sorriso discreto no rosto
invisível na escuridão pesada.
Por vezes, a chuva me acorda ao tocar na janela
teu corpo desnudo ao meu lado
envolto nos lençóis desarrumados.
Deixo a manhã preguiçosa invadir
e apenas te observo - calado.
Tuas costas, teus cabelos, tua respiração.
Desenho mapas e paisagens na tua pele
ligo os pontos e imagino tatuagens
a ponta dos dedos é meu pincel
tuas costas, a tela para minha aquarela.
Por vezes, interrompo o sonho com um beijo
a realidade a bater na porta, o alarme do relógio
a luz do sol intrusa a adentrar o quarto
revelando a verdade,
revelando que estou só.
@carolinepaternostro |
quarentena em SP |
Publicado pela primeira vez em 1795, o breve livro de Xavier de Maistre (1763-1852) é um exercício de risonha subversão de hierarquias, sejam elas militares, metafísicas ou literárias. Zombando das circunstâncias, o autor transforma os quarenta e dois dias de castigo em ponto de partida para uma paródia dos relatos de viagem, algo que se encaixa muito bem em tempos de quarentena, lockdown e pandemia.
O breve livro foi minha companhia no mês de setembro de 2020, enquanto passava os minutos, as horas, os dias ao lado de minha mãe em um leito de UTI em São Paulo.
Eis alguns trechos:
"As horas deslizam sobre nós e se precipitam em silêncio pela eternidade, sem nos fazer sentir sua triste passagem." (p. 13)
"Uma cama nos vê nascer e nos vê morrer, teatro inconstante em que o gênero humano encena, dia após dia, dramas interessantes, farsas risíveis e tragédias espantosas. - A cama é um berço enfeitado de flores; - é o trono do amor; - é um sepulcro." (p.14)
"Essa vantagem me fez desejar que se inventasse um espelho moral, em que todos os homens pudessem se ver com seus vícios e virtudes. Cogitei mesmo propor a alguma academia que instituísse um prêmio por tal descoberta, quando reflexões mais maduras me provaram sua inutilidade." (p. 42)
(Maistre, Xavier de. Viagem ao redor do meu quarto. trad. Veresa Moraes. São Paulo : Editora 34, 2020)
O bilhete
Gosto da sua letra, do jeito que deitas o traço firme sobre o papel imaculado, desenhando letras e mais letras de forma decidida, com os olhos de jaboticaba fixados na ponta da caneta que desliza sobre a superfície. O texto ganha forma, corpo e apenas te observo enquanto escreves. Caprichas na forma como cortas a letra t. Os is trazem um pingo certeiro. A escrita flui como se a pergunta formulada na prova já tivesse sido pensada e respondida mentalmente antes de iniciares o texto. Sento-me sobre a mesa do professor para poder contemplar a letra que mais se parece com uma pintura. Talvez seja uma grande besteira este meu devaneio banal. Quem se encanta com uma letra? Não sou professor de caligrafia e nem professor de português, muito menos calígrafo, mas como é bom receber uma prova onde não é preciso decifrar garranchos e hieróglifos. Deveriam incluir um curso de arqueologia egípcia na formação do professor para que pudéssemos ler as provas de alguns alunos. Bem, estou eu divagando novamente. Quanta besteira, professor! Ninguém mais vai fazer prova escrita a mão. Em breve, tudo será digitado e as belas letras caprichadas se perderão, cairão num buraco negro, no esquecimento eterno. Ah, mas como eu gosto de admirar a tua letra em bilhetes que guardo com enorme carinho.
Remexer gavetas é uma atividade de risco, ainda que pareça algo tedioso e despido de periculosidade. Há sempre o perigo de ressuscitar memórias adormecidas, inertes em algum recanto da mente - ou de um baú. Basta encontrar algo para que aquele artefato solte algum gás tóxico que estava congelado no objeto e desperte e provoque as mais diversas sensações, sorrisos, lágrimas, raiva. Uma carta. Uma foto. Uma receita gastronômica. Uma música. Um perfume. Um ingresso de cinema. Um bilhete.
O bilhete ainda trazia o clip de metal preso na parte superior, mas se separara do papel onde estava preso originalmente. O recado desprendera-se do trabalho de conclusão de curso de Joana, que analisou o projeto do Edifício Guaimbê, de Paulo Mendes da Rocha e sua influência na arquitetura residencial paulista. Lembro-me que fui tomado de grande surpresa quando a morena, um tanto debochada e que parecia entediada nas minhas aulas de História da Arquitetura Brasileira, escondida por detrás dos longos cabelos castanhos escuros e que deixava cair sobre o lado esquerdo do rosto, um toque de charme - ou talvez uma timidez disfarçada. Nunca soube ou certo. Lecionava no início do 3o. ano, 5o. semestre e muitos tinham minha disciplina como algo inútil, mera perfumaria para preencher a grade curricular. Aqueles que se dedicavam a minha disciplina e compreendiam a importância da história para a arquitetura, despontavam, mais adiante, como profundos observadores da realidade urbana brasileira. Posso me orgulhar de alguns alunos que orientei, sem dúvida, mas quando Joana me abordou no final do terceiro ano, na minha sala acanhada perto da biblioteca da faculdade, tive a nítida impressão de que ela havia me confundido com outro professor. Algo que não seria estranho, pois sou um tipo comum, sem as excentricidades dos grandes professores de arquitetura.
A proposta de trabalho de conclusão de curso tinha consistência e o tema estava circunscrito à minha área de pesquisa. Ela se mostrou mais preparada do que imaginava. Tentei puxar pela memória as notas dela na minha disciplina, mas não era nada que me despertasse um traço natural de genialidade. Era, assim como eu, uma aluna comum. Pareceu-me esforçada e teceu-me elogios que me fizeram ruborizar. Olhei-a com um olhar diferente a partir daquela primeira conversa.
Ela se empolgou com o tema. Fizemos vários encontros na faculdade, alguns coletivos, outros individuais e aqueles olhos de jaboticaba despertavam um encanto que achava esquecido, perdido no tempo em algum lugar do passado. Paixões platônicas são verdadeiros narcóticos, entorpecem o ser, pintam a realidade de tons pastéis, estampam um sorriso quase permanente no rosto do viciado. Com tantos anos de vida acadêmica, não era a primeira vez que era acometido por esta síndrome platônica. Nas outras vezes, o silêncio não havia sido quebrado e o segredo restou guardado em alguns cadernos que usava como diários. Desta vez, porém, resolvi deixar florescer minha atração. Esperei a banca e o resultado. Fora aprovada e meus colegas desfiaram longos elogios à jovem arquiteta, agora recém formada. Enchi-me de orgulho e satisfação.
Alguns dias depois, convidei-a para jantar com a justificativa de comemorarmos o êxito do trabalho. Ao final de um agradável encontro, declarei-me. Ela ficou incomodada. A reação dela me deixou desgostoso. Pensei se minhas palavras poderiam caracterizar alguma forma de assédio, de pressão indevida. Um calafrio percorreu minha espinha e fui tomado de um sentimento de pânico. Minha carreira, meu prestígio, meus longos anos na academia. Tudo passou pela minha cabeça enquanto ela simplesmente passava o dedo pela borda do guardanapo de pano e tentava desfiar algumas palavras para trazer-me de volta a realidade. Um choque de realidade, sim, era isso que recebi naquele final de refeição. Envergonhado, as palavras me faltaram. Ela agradeceu o jantar, levantou-se e pediu um Uber. Não seria eu a levá-la de volta para casa. Não seria eu a provar o gosto daqueles lábios. Não seria eu a modificar o entorpecente em realidade viva.
Daqueles dois anos de convivência mais intensa, além de meus delírios e devaneios, restou apenas o bilhete que ela escrevera e prendera no trabalho final do curso.
ENTRE CORPOS
O ônibus não estava lotado naquela manhã, igual a todas as
outras. Passageiros se alinhavam de forma assimétrica diante de mim, ao
percorrer com os olhos a massa humana, fui arrebatado por algo inusitado. Entre
braços e corpos, formava-se um espaço onde podia avistar um pescoço longilíneo,
delicado, que desaparecia numa cortina de cabelos loiros. Lembrei-me de Rodin e
de seus estudos das partes do corpo. Aquele pescoço seria um modelo perfeito
para uma escultura do mestre francês. Como abelha atraída por uma bela flor
repleta de pólen, vi-me abobalhado a admirar aquela obra de arte em forma
humana. Confesso que alguns pensamentos mais sensuais me cruzaram a mente, mas
aquele não era o lugar para ter estas vibrações. Era sensual, sim, não havia
dúvida, mas desde quando um pescoço se tornara algo sensual para mim? Achei
divertida aquela reflexão sem tirar os olhos do pescoço da bela moça.
A gola branca, de blusa discreta, realçava a pele amorenada
que não escondia algumas pintas e uma pequena marca de nascença em forma de
meia lua, bem clara, quase imperceptível. Meu olhar aguçado não poderia deixar
desenhar estrelas naquelas pintas que dançavam ao redor da lua. Dois colares
com correntes finas e douradas acariciavam o entorno do pescoço e repousavam
sobre o colo. Alguns fios de cabelo escondiam o que seria um alvo predileto de
um vampiro, que se refestelaria com uma larga mordida, a transformar a bela
moça em sua seguidora noturna. Seria eu um vampiro que agora despertava diante
daquele pescoço que me atraía de forma estranha e inexplicável? Teria eu algum
sangue de antepassado vindo da Transilvânia ou aparentado do Conde Drácula? Ou
seria algum personagem daquela série de livros de adolescentes vampiros Crepúsculo?
Quase ri alto com tanta besteira a rondar minha mente com pensamentos
desconexos.
Mas afinal, entre aqueles braços e corpos, só conseguia
avistar o pescoço, um pedaço da orelha que não estava coberta pelos fios loiros
e uma leve curvatura do maxilar a iniciar o desenho da face. Ela parecia
hipnotizada pelo celular, totalmente alheia à minha presença e meu olhar fixo.
Meu interesse passava despercebido. Quando chegou minha hora de descer do
ônibus, lancei um olhar acrescido de um sorriso terno, mas ela me ignorou. Quem
sabe amanhã, tomaria o mesmo ônibus. Quem sabe amanhã, poderia perguntar seu
nome. Quem sabe amanhã, ela me olharia nos olhos.
Veio a pandemia e decretaram uma longa quarentena. Era para
ser por quinze dias, depois mais quinze, viraram 60, adicionaram mais um mês e
o pico parecia inalcançável. Até hoje acho que ainda não chegamos lá, mas
resolveram que já era hora de permitir um afrouxamento, um lento despertar da
cidade adormecida.
O período de hibernação dos ursos deve ser assim, salta-se do carnaval para as férias de julho, sem Páscoa e sem festa junina, e adicione alguns feriados que foram devorados pelo vírus por decisões políticas. Transitar por São Paulo, após escurecer, é como caminhar por uma cidade semideserta, quase fantasma, com ar soturno, tristonho. O trânsito evaporou, não há carros, não há pessoas, não há ruídos. O silêncio impera e traz à memória uma cidade de interior, pacata, tranquila, silenciosa.
Aos poucos, há uma reabertura. Pessoas voltam a circular pelas ruas ao longo do dia, mas há algo de diferente. Apagaram os sorrisos. Olhe para a foto de um rosto e cubra a parte abaixo do nariz e o queixo. É praticamente impossível dizer se a pessoa está sorrindo, se a pessoa está triste, se a pessoa está nervosa. Perde-se a expressão quando escondem a nossa boca por detrás de uma máscara.
Não estou aqui a me revoltar contra as máscaras, apenas constato que os sorrisos deixaram de habitar a cidade. Continuam escondidos em quarentena dentro das casas e dos ambientes seguros. A partir de agora, não se pode mais cumprimentar o porteiro ou uma pessoa na rua com um singelo sorriso e um aceno de cabeça. O aceno de cabeça ficou capenga, órfão de um elemento fundamental que é a expressão labial. Vamos ter que aprender a ler olhares, a atentar para as pequenas oscilações do canto dos olhos, das sobrancelhas, do nariz, da testa franzida. A percepção será outra, pois a boca se esconde.
Primeiro, o coronavírus roubou-nos o tempo e a liberdade. Agora, o coronavírus apaga os sorrisos de nossos rostos.