sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Conto: Todo dia

 


foto: Renato Bueloni Ferreira



TODO DIA

Todo dia ela faz tudo sempre igual, seguindo a rotina cotidiana cantada por Chico Buarque. Entrou no elevador e atraída pela força magnética do enorme espelho no fundo daquela caixa metálica, pegou o celular na bolsa, arrumou o cabelo e ajustou o enquadramento para tirar mais uma fotografia. E depois outra e mais outra, afinal, uma foto apenas não é suficiente, pois é preciso escolher a melhor para postar nas redes sociais.

 

Todos os dias fazia o mesmo registro pela manhã ao sair de casa. Um registro diário que documentava o passar dos dias, das semanas, das estações e dos anos. As fotos sempre parecidas. As poses semelhantes. O sorriso contido e discreto, o rosto um pouco encoberto pelo aparelho celular era proposital. Queria dar um ar misterioso, fazer um charme com aqueles registros. Se montasse uma sequência em forma de filme, teria um documentário do envelhecimento sorrateiro e imperceptível.

 

Naquela manhã, parou diante do espelho e ficou a contemplar o que via. Não tirou a foto. Esqueceu de apertar o botão do térreo. Paralisada, mergulhou no espelho como se adentrasse um portal. Uma janela se descortinava diante dela e tudo ganhara novas cores. Notou as raízes brancas que surgiam e lembrou-se do comentário feito por um amigo um dia antes. Ele disse que era charmoso e lhe deixava ainda mais bonita. Achou graça, mas não gostou. Precisava marcar cabelereiro e pintar aqueles fios brancos. Mas de repente, viu-se arrebatada por uma sensação física de passagem do tempo. Não eram dores e nem sinais externos. Ela não tinha rugas aparentes e nem marcas na face, mas o espelho penetrava no seu coração e ela viu-se envelhecida, cansada, exaurida por uma rotina que lhe ditava os caminhos. Percebeu que deixara de ser protagonista de seus dias e passara a ser mera passageira, conduzida pela correnteza deste rio que chamamos de vida.

 

Quantos anos ela deixar passar sem que tomasse as rédeas de sua vida? Quanto tempo deixara transcorrer? Tentou se lembrar da última viagem que fizera por decisão própria. Iam-se lá uns dois ou três anos, pois nos períodos recentes, acompanhou amigas em viagens curtas, não definindo roteiros ou passeios. Ia a tiracolo, como mera acompanhante, sem voz ativa. Quando foi que ela se deixou apagar assim? Sentiu um vazio interior a lhe consumir, um aperto no coração e foi tomada de um senso de urgência, uma vontade que lhe ardia por dentro e de repente deixou sua face ruborizada. A chama estava viva dentro dela, apenas adormecida. Sorriu cheia de energia e apertou o botão do térreo com determinação renovada. Hoje seria o primeiro dia de algo novo. 



quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Trechos: Vá aonde seu coração mandar, Susanna Tamaro

 



Trechos de livros

 “O Acaso. Certa vez, o marido da senhora Morpurgo me contou que em hebraico essa palavra não existe. Para indicarem qualquer coisa relativa à casualidade, precisavam recorrer à palavra azar, que é árabe. Engraçado, não acha? Engraçado, mas também tranquilizador: onde há Deus, não há lugar para o acaso, nem mesmo para o humilde vocábulo que o representa. Tudo é ordenado, regulado de cima, tudo quanto nos aconteça acontecerá porque tem um sentido. Sempre tive muita inveja daqueles que aceitam essa visão de mundo sem hesitação, por sua leveza. No que me diz respeito, e com as melhores intenções da minha parte, jamais consegui fazê-la minha por mais de dois dias seguidos. Diante do horror, diante da injustiça, sempre voltei atrás; em vez de justificá-los com gratidão, sempre surgiu em mim um incontido sentido de revolta.”

(Vá aonde seu coração mandar. Susanna Tamaro, trad. Mario Fondelli, Rio de Janeiro : Versus, 2023, p.59-60)


Com o passar dos anos, o acaso se tornou um companheiro decifrável, uma peça do quebra cabeça da vida que se encaixa e faz sentido. Tantas pessoas cruzam nossos caminhos e poucas ficam, permanecem com sua presença indelével e indispensável. Por quê?

São estas pessoas que nos ajudam a ser quem somos, ajudam na jornada, acompanham na caminhada da vida, moldam-nos com seus exemplos, defeitos e virtudes, fazem-nos sorrir e acolhem-nos em seus braços nos momentos de dor e tristeza. 

Bendito seja o acaso! E por trás do acaso, há Alguém a zelar por nós todos.


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Conto: Um dedo de prosa

 

foto: Renato Bueloni Ferreira


Um dedo de prosa


Têm dias que eu apenas queria alguém para conversar, tomar um café no final do dia e perguntar: qual livro você está lendo?

E então deixar-me-ia inebriar pela doçura da tua voz narrando alguma estória interessante, ou mesmo que não seja interessante, iria me pendurar com atenção em cada detalhe narrativo, em cada pausa e suspiro da tua voz, reparando no movimento dos teus lábios delicados e finos, atraído pelo olhar fixo no meu. Não te interromperia. Apenas, deixaria que me contasse o que quisesse do livro, que falasse e falasse e falasse.

Nunca te contei, mas quando estou estressado ou sentindo aquele vazio que bate por vezes em dias corridos, ouço algum áudio teu que deixo guardado no whatsapp, somente para ouvir tua voz. Já tentei imitá-la e no silêncio, consigo te imaginar falando, sorrindo. Cada trejeito do rosto completa a fala suave que me abraça com todo afeto. Curioso pensar que o jeito de falar pode abraçar, pode acalmar, pode adentrar no fundo do coração e desenhar um sorriso, terno, sincero, delicado. Parece que estes abraços alternativos têm me cativado mais do que os abraços reais, vazios, protocolares.

Outro dia, entregue a uma sessão de massagem para tentar destravar as dores na lombar e no ombro, fui surpreendido pelo firme segurar da minha mão. Dedos longos e finos, entrelaçados com os meus, e de repente, senti um arrepio percorrer minha coluna. Não queria soltar da mão da massagista que me atendia. Ela percebeu que ao segurar minha mão, havia um grito silencioso contido dentro de mim. Queria este pequeno gesto de afeto, mas não sabia que dele precisava. Ela apoiou a outra mão espalmada sobre minha coluna, como se fizesse uma ligação direta para dar a partida num carro ou provocar um curto circuito. Senti um arrepio mais forte, talvez algo produzido apenas na minha imaginação, mas aquela aparência de energia me deixou pensativo, instigado. Aquela jovem que me atendeu no spa estava inteiramente atenta às minhas necessidades naquele momento e ela, ao segurar minha mão, abraçou-me de forma figurativa. Queria congelar o tempo, parar o relógio, prorrogar aquela tarde. Queria fazer a sensação de preenchimento do vazio perdurar para sempre.

Tua voz tem este mesmo poder mágico. Acolhe. Abraça. Energiza. Talvez hoje esteja enquadrado como perfeito aquariano, mergulhado em devaneios e ideias sem sentido. Para mim, porém, há muito sentido. Quando descubro estas coisas banais, que estão ali pipocando no cotidiano, meu dia ganha novo sabor e cor. É como colocar novos óculos para ver a realidade e tudo se transforma, ganha relevo, profundidade, altura. Acho que você nunca desconfiaria que sua voz seria um bálsamo tão penetrante e com efeitos medicinais para minha alma. Pois é, tens um poder oculto que descobri, mas que guardo a sete chaves. Estou sendo muito egoísta em privar a humanidade desta maravilha que cura? Ou seria este remédio aplicável somente a aquarianos bobos e deslumbrados que se conectam na exata frequência da tua voz?

Não sei a resposta. Sei apenas que gosto de te ouvir, gosto de estar com você, gosto de aprender contigo. Adoro jogar fora um dedo de prosa contigo. O mundo é um lugar muito melhor com você. Que sorte a minha!

 


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Conto: Rabiscos mentais

 


Conto: Rabiscos mentais


Talvez eu goste de você mais do que deveria. Talvez nem deveria ter deixado me interessar por você, deveria ter me apegado a defeitos, a detalhes negativos, àqueles pontos que incomodam e desfazem qualquer encanto.

Acho que o cigarro era para ser um destes eventos para torcer o nariz. Lembro que você me disse que fumava com certo temor da minha reação, como se eu fosse torcer o nariz e fazer cara feia. Mas ouviu de mim que eu também fumei e gostava de fumar. Contive-me, mas quase emendei um “acho sexy fumar”. Engoli as palavras e calei-me. Naquele dia, após o almoço, enquanto caminhávamos pela rua, você acendeu um cigarro e eu fiquei apenas a observar. Enquanto te ouvia, minha imaginação viajava para um recanto distante, só nós dois a fumar e a brincar com as piruetas da fumaça do cigarro. Entrei numa realidade paralela somente perceptível a mim. Acho que fui discreto o suficiente para que não percebesses o que se passava nos recantos da mente.

Tentei fazer uma lista mental de pontos negativos, mas todos os quesitos eram positivos. Custei a achar algo que me incomodasse. Terminei com um conjunto vazio.  Acho que o sentimento turva o raciocínio, desfoca, neblina que cai espessa e impede a visibilidade clara. O coração parece saber navegar, mesmo com neblina intensa e sem qualquer visibilidade. Segue seguro e firme, ainda que por vezes pareça hesitar, sempre adiante, derrubando as barreiras e justificando cada atitude.

Havia leveza e alegria no ar e tudo causado pelo teu sorriso. Em tempos que se fala tanto em energia e conexão, parece que tudo se encaixou e a energia gerada era carbono free. Estávamos prontos para encarar a era das novas fontes energéticas? Brincadeiras a parte, o caminho ainda se revelaria longo e cheio de percalços, se é que existe caminho a trilhar. Caminhar sozinho pode ser tortuoso e queria que a jornada não fosse solitária.

 



segunda-feira, 26 de maio de 2025

Conto: Quanto tempo?

 


Quanto tempo?


Ela tomou um longo e solene gole do café, num gesto quase ritualístico, e perguntou sem olhar nos olhos de seu amigo:

- Já imaginou se soubéssemos quanto tempo de vida ainda nos resta?

- Já, mas não me importo muito com isso. O fim chegará para todos e para cada um de nós no seu devido momento. – respondeu sem cerimônia, sem preocupação, sem esposar qualquer sentimento.

 Um resposta fria e objetiva que a deixou meio sem rumo para avançar no tema.

Ele sorriu e olhou para ela.

- Você tem medo que o futuro nos reserva?

- Não tenho medo do que o futuro nos reserva, mas se soubesse quando fosse morrer, talvez usaria meu tempo de forma diferente. Acho que daria mais valor ao tempo. Por exemplo, e se lhe restassem apenas doze horas de vida, o que faria agora?

Ele engoliu o café, olhou-a com um leve sorriso e disse:

- Eu te beijaria e prolongaria o beijo até que meu tempo expirasse.


quinta-feira, 27 de março de 2025

Inspiração e exemplo

 

Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro - @rbueloni


Adentramos o mês de março e é impossível não lembrar do início da pandemia. Lá se vão 5 anos desde que fomos obrigados a manter o distanciamento social, ficamos trancados em casa, fomos impedidos de viajar e explorar o mundo. A vida se reduziu a espaços limitados. Todo ano relembro do início da pandemia e do mundo distópico que se materializou diante de nossos olhos. Muitos sucumbiram. Outros ignoraram. Outros ainda – acho que a maioria – saíram mais fortes, mais conscientes da nossa fragilidade, mais gratos pela vida.

 

Neste início de ano percebi um outro dado que tem me levado a uma reflexão mais profunda e a uma mudança de atitude. Percebi que a distância temporal entre a virada do século e o tempo provável que me resta de vida são equidistantes. 25 anos transcorreram desde o início do século e do bug do milênio (aquela catástrofe que não se concretizou) até o dia de hoje. E somando 25 anos à minha idade, provavelmente em 2050 estarei próximo da minha finitude. Isto me incomoda? Isto me assusta? Nem um pouco, apenas me fez refletir. O tempo é fugaz e há certas coisas que não vale a pena postergar, há certas atitudes que preciso mudar e há certos momentos em que não devo me calar, não devo deixar para depois, pois talvez não  haja um depois.

 

Se tudo parece-lhe confuso, calma que vou tentar me explicar e unir os dois parágrafos acima.

 

A pandemia deixou suas marcas e mudou alguns hábitos. O trabalho remoto passou a ser algo usual, a preocupação com a saúde deixou de ser algo a ser adiado, novas tecnologias foram incorporadas e as pessoas foram tomadas por um desejo constante de viajar e explorar e descobrir novos lugares. O dinheiro passou a ser utilizado de forma mais desapegada. Guardar para sempre? Não, gastemos um pouco, pois não se sabe quanto tempo teremos até a próxima pandemia.

 

O fato é que alguns dos nossos hábitos mudaram. O nosso mindset – para usar um termo moderninho – mudou. Tenho viajado muito mais. Prefiro viajar e adiar a troca de um veículo. Fiz um check up e confirmei o que já suspeitava: tenho pressão alta e o colesterol também. Vou começar a usar medicamento de uso contínuo. Sinal da idade. Passei a fazer caminhadas 3 vezes por semana e agora vou iniciar treinos de força, ou a boa e velha academia. Estudos demonstram que estes treinos ajudam a preservar a memória, além de garantir um envelhecimento de qualidade.

 

E o que isso tem a ver com inspiração e exemplo e pandemia e novos hábitos?

 

Dizem que as palavras movem e o exemplo arrasta. O exemplo arrasta e inspira novos hábitos. Muitas vezes estes novos hábitos são introduzidos por inspiração de pessoas que nos cercam. Algum amigo que faz exercício e te convida para ir à academia, por exemplo. Ou aquela amiga que posta todo dia um treino na academia. Estes exemplos me motivaram a começar com as caminhadas matinais. E ao invés de apenas seguir o exemplo, resolvi agradecer e contar para estas pessoas que o exemplo delas me motivou.

 

Enquanto pensava neste texto, lembrei-me de um exercício que fiz de escrita criativa numa oficina da Terapia da Palavra. A proposta do exercício era escrever uma carta para um chefe, um familiar, alguma pessoa que tenha sido importante influência em nossas vidas. Resolvi escrever a carta para meu primeiro chefe, Dr. Luiz Vergueiro, com quem aprendi muito sobre o trabalho do advogado e a postura profissional. Achei que ia ser difícil escrever, mas percebi que ao me debruçar sobre aqueles anos iniciais de estágio, muitos detalhes vieram à mente. A carta nunca foi enviada, mas sugeriram-me que a enviasse. Percebi como fui inspirado pelo exemplo e como aprendi com aquele sócio de um grande escritório de São Paulo.

 

E novas inspirações têm vindo neste começo de ano. Quem sabe planejar um período sabático em algum país distante? Quem sabe virar um nômade digital e perambular por países do leste europeu? Até brinquei com uma amiga que quero ser igual a ela quando crescer...ou melhor, quando envelhecer.

 

A mudança deste começo de ano foi que comecei a falar mais, a agradecer as pessoas, a compartilhar estas inspirações, a elogiar condutas. Parei de calar e passei a falar, ainda que possa parecer besteira ou que seja um elogio banal e corriqueiro, ainda que seja uma aparente coincidência ou fruto do acaso. Você nunca sabe quando um elogio ou uma palavra amiga pode mudar o dia – e quiçá a vida – e o ânimo de uma pessoa. Por que não olhar ao redor, observar e deixar-se levar por bons exemplos? O tempo é curto. A vida é curta. Sejamos pessoas que semeiam sorrisos e esperança. Afinal, a esperança caminha de mãos dadas com a alegria. 


sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Poesia: Poente laranja

 

foto Renato Bueloni Ferreira



POENTE LARANJA


a moça de olhos oceânicos e profundos

camuflados em cabelos revoltos

debruçada na varanda, exalava charme

o poente a hipnotizava, todos os dias

o vento vinha lhe beijar a boca

o céu alaranjado vinha lhe acariciar a face

a luz do final de tarde lhe acalentava a alma

antes de mergulhar no escuro da noite

e esperar um novo renascer.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Poesia : Invisível

 

foto: Renato Bueloni Ferreira



INVISÍVEL


Mergulho no profundo âmbar dos seus olhos

olhar distante e perdido numa dimensão impenetrável

tento decifrar teus pensamentos, sentimentos, humores

tento entrar em tua corrente sanguínea e chegar ao coração

ao âmago da tua alma, ainda que imaterial e inalcançável

rodeio perdido no labirinto do teu ser e não acho o caminho.

Desnorteado, aceito minha incapacidade de despertar em ti

a fagulha que incendeia o candeeiro

a brasa que faz arder o coração e aquece a água do chimarrão.

Pobre de mim que passo invisível diante do profundo âmbar dos teus olhos.


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Conto: Arembepe

 


AREMBEPE


Ela deixou suas pegadas na areia escura da praia deserta. Abraçada pela brisa do mar, que salpicava sua pele com a maresia, sentiu uma enorme liberdade borbulhar em seu coração. Desconectada, tinha apenas o céu azul, imenso e rabiscado por algumas poucas nuvens, como tela para contemplar. Nenhum recado de whatsapp ou email para responder, apenas a areia da praia, o mar, o céu, os coqueiros, a companhia da amiga. Pancetti se encantaria com a vivacidade das cores e retrataria de forma magistral em uma de suas telas, pensou.

A cabeça ainda girava com ideias para projetos e iniciativas, mas apaziguava estas inquietações, deixando o sol lhe acariciar a pele e espantar a tez cor de escritório paulistano. Não havia ninguém ao redor. Tudo deserto a perder de vista. Caminhou pela praia sem rumo, sem medir os passos, sem contar calorias ou ritmo, apenas caminhou e deixou que as ondas beijassem seus pés. A água morna massageava aqueles pés cansados. Ah, como era bom andar descalça, sem compromisso, sem horário, sem metas ou horários a cumprir!, pensou e deixou-se inundar pela calma e tranquilidade do lugar.

Os óculos de sol filtravam a luz que se projetava nos olhos âmbar. O azul ficava mais vivo por detrás das lentes. O verde estava mais intenso e a claridade era domada. Deitou-se sobre a canga e apenas deixou o tempo passar. Fechou os olhos, tirou os óculos e respirou profundamente. A alegria tomava-lhe o corpo e atiçava a alma. Se tivesse encomendado um dia para iniciar as férias, não teria pensado em algo tão perfeito e belo. A vida tem destas surpresas e agradeceu por estar ali, viva e contemplando toda aquela beleza. Talvez o que lhe faltava era exatamente a coragem para fugir do agito e mergulhar no silêncio de Arembepe.


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Reflexão

 


Nos encontros, sempre é mais feliz aquele que ama mais. Valorize os encontros. Valorize o tempo. Valorize o presente.


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Silêncio e ruídos na metrópole

 


Praça Vinicius de Moraes - @rbueloni


Se no dia de hoje no ano de 2019, alguém dissesse que no ano seguinte estaríamos todos trancafiados em casa, isolados, temerosos de andar na rua e de qualquer contato social, teria sido rotulado como uma bela pegadinha do dia da mentira.

 

O filósofo coreano Byung-Chul Han inicia o seu Sociedade do Cansaço (2014) afirmando que o desenvolvimento tecnológico afastara o risco de uma pandemia, pois havíamos dominado a fabricação de remédios capazes de evitar o alastramento de doenças em escala global. Ledo engano.

 

Em 20 de março de 2020, iniciamos uma quarentena no Brasil e o mundo ficou paralisado por causa da Covid-19. Uma pandemia que interrompeu o comércio internacional, as viagens, esvaziou escritórios e obrigou-nos a ficar em casa, isolados em nossas celas e o silêncio tomou conta das cidades. Alguns achavam que era o apocalipse, outros ficaram indiferentes e riam da “gripezinha”. Muitos morreram. Outros tiveram sequelas. Os serviços de saúde ficaram sobrecarregados até que se encontrou uma vacina e um possível protocolo de tratamento.

 

O que mais me marcou naqueles dias de isolamento foi o silêncio. A forma como a sonoridade da cidade mudou de forma radical.

 

Outro dia, caminhando na Praça Vinicius de Moraes num sábado pela manhã, ouvi o canto de algumas cigarras. Uma memória afetiva da infância no sítio me transportou de volta para os anos 1980. Grilos, latidos de cachorros, sapos coaxando, o relincho de um cavalo, um galo a cantar. Sons do interior, trilha sonora de roça, mas que tanto acalma o íntimo. Um convite para desacelerar e apenas ouvir os ruídos deitado numa rede ou sentado no gramado.

 

Tenho para mim que as pessoas não se atentam muito para os sons, para os ruídos da cidade grande. São Paulo é barulhenta, mas aqui no escritório, desfrutamos de um silêncio quase monástico em alguns dias quando o telefone dá uma trégua e passamos o dia trabalhando em silêncio. Sim, hoje em dia, pode-se dizer que o trabalho do advogado é silencioso. O silêncio que é interrompido apenas pelo dedilhar das teclas no computador. Até meu celular fica sempre em modo silencioso. Aprecio o silêncio e deixo-me levar. O silêncio inspira, acalma, convida-me a conversar com Deus. O silêncio é a porta de entrada para a vida interior, para os recantos da alma.

 

Não tenho saudades da pandemia e nem do isolamento, mas a pandemia deixou como fruto positivo a redescoberta do silêncio. Talvez não a redescoberta, mas o contraste entre o silêncio e a agitada rotina paulistana. Um contraste que exige atenção para ser percebido, um contraste que pede sensibilidade, pois é sutil e passa despercebido pela grande maioria das pessoas que caminham neste imenso formigueiro que é a pauliceia.


quinta-feira, 7 de março de 2024

Conto: Esquecida

 



The bridge at Herndon, Virginia - @rbueloni



ESQUECIDA


Eu me chateio. Ainda. Talvez não devesse mais, após 32 anos, mas eu havia pedido para tirar a calça de cima da cama antes dela deitar e apagar a luz do quarto. Era um pedido singelo, objetivo, direto. Bastava pendurar a calça no cabide ou deixá-la sobre a cadeira no canto do quarto. Mas ela ignorou meu pedido. Passou em branco. Aquele momento onde o ignorar se confunde com o esquecer e transforma-te em um ser invisível. Muita coisa passava em branco e cada vez com maior frequência.

 

Pedia para comprar pasta de dente no supermercado, ela esquecia. Pedia para pegar dinheiro no caixa eletrônico, ela esquecia. Perguntava se podíamos jantar com amigos, ela esquecia que iria trabalhar. E assim os dias se seguiram, um após o outro. Não me irritava, mas apenas me chateava e notava o esquecimento que recaía sobre mim. Estava sendo esquecido, abandonado, pedacinho por pedacinho, qual um navio de partida que se afasta do porto e a praia vai diminuindo de tamanho até que o horizonte se confunde com a imensidão do mar.

 

Um dia, levei-a ao médico. Desconfiava que aquele esquecimento pudesse ser algo a mais. Não deixei que fosse sozinha e marquei a consulta. Alguns exames e dias depois, veio o diagnóstico de Alzheimer em fase inicial. Ela estava se esquecendo da vida.