sexta-feira, 28 de junho de 2013

Conto: Passagem do Tempo



PASSAGEM DO TEMPO



Parou diante das amplas janelas de vidro do berçário, as mãos nos bolsos, a calmaria ainda reinava em mais uma manhã que começava no hospital maternidade. Julia, Sophia, Lucas, Vinicius, Rafaella, Augusto. Dormiam o sono dos justos os recém-nascidos que ignoravam o que o mundo lhes reservava. Tocado por aqueles pequenos seres, refletiu sobre o que a vida lhe brindara. Não experimentaria a paternidade de novo. Ao menos não na forma natural e com a atual esposa que já devia ter entrado no centro cirúrgico para uma histerectomia.

Sentiu o peso dos anos, a passagem do tempo, o envelhecimento que presenteara com cabelos brancos visíveis, mas sem qualquer sinal de calvície.  A pequena Julia não se mexia. Dormia calma, tranquila, coberta por um cobertor rosa, cabelos espetados e bem escuros. O sorriso discreto e contido desenhou-se no seu rosto, sem esconder a melancolia, a frustração de não ter atingido muitos dos objetivos a que tinha se proposto. Cobrava-se por isto.

Lembrou-se da primeira vez que viu a filha no berçário, olhos abertos, atenta, desperta para o mundo e curiosa por tudo que a cercava. Chorou naquele momento em que a paternidade se descortinou. Chorou de uma maneira única e que lhe marcaria para sempre. As lágrimas derramadas naquela madrugada tiveram o dom de cavar sulcos profundos em seu coração, que parecia ser de granito.

Os ensaios haviam acabado e o momento da estreia havia chegado. Em cartaz, o pai.  Buscou na memória os bons e maus momentos em que se apresentara em cena. No geral, avaliou bem seu desempenho,  sem falsa modéstia. Era um bom pai. Tinha sido e continuava a ser. E pedia a Deus, todos os dias, que continuasse a ser. Disfarçava suas fraquezas, poupava os filhos e a esposa das dificuldades financeiras e das noites mal dormidas, omitia as vezes em que deixava de almoçar para economizar o dinheiro e destiná-lo para algum fim familiar.

O vazio inicial foi preenchido com a sensação de realização, de trabalho bem feito, do sacrifício valer a pena, de ter cumprido a missão que lhe fora confiada até o momento. Não experimentaria a paternidade de novo.  Vivia a paternidade diariamente e isto ninguém seria capaz de lhe tirar. Apesar dos pesares o que tinha era de uma riqueza incalculável.

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