Resenha do romance Sinfonia em Branco, de Adriana Lisboa (2a. Ed. Rio de Janeiro : Objetiva, 2013), vencedor do Prêmio José Saramago.
“O amor era como a marca pálida deixada por um quadro removido após anos
de vida sobre uma mesma parede. O amor produzira um vago intervalo em seu
espírito, na transparência dos seus olhos, na pintura envelhecida da sua
existência. Um dia, o amor gritara dentro dele, inflamara suas vísceras. Não
mais. Mesmo a memória era incerta, fragmentada, pedaços do esqueleto de um
monstro pré-histórico enterrados e conservados pelo acaso, impossível recompor
um todo íntegro. Trinta anos depois. Duzentos milhões de anos depois.”(p.
15-6)
Tomás entra em cena de forma
enigmática. Um homem que aguarda a chegada de Maria Inês, irmã de Clarice.
Maria Inês era “uma mulher que a memória
sempre vestia de branco e de juventude”.
Logo no primeiro capítulo,
Adriana Lisboa, de forma lírica e provocadora, apresenta-nos Tomás, Clarice e
Maria Inês. As duas últimas são irmãs. Maria Inês casa-se com João Miguel,
primo de segundo grau, forma-se em medicina e permanece morando no Rio. Não
retorna mais para Jabuticabais, onde nascera e crescera. Clarice, após a morte
da mãe e do pai, volta para a fazenda e ali permanece, vizinha de Tomás.
Dois vizinhos que se tornam
amigos e confidentes nas madrugadas frias e insones. A conversa geralmente
orbita em torno de Maria Inês e a ansiedade do reencontro com a visita que se
torna próxima.
Clarice casou-se com Ilton
Xavier, outro vizinho da fazenda de Afonso Olímpio e Octacília. Clarice trazia
consigo o queloide nos pulsos nus resultado de uma tentativa frustrada de
cortar os punhos.
“Um dia, a morte. Clarice sentiu mais uma vez com as pontas dos
polegares as duas cicatrizes gêmeas, uma em cada punho. E sorriu um sorriso
involuntário e triste, um sorriso sem mistérios, ao pensar que afinal acabara
sobrevivendo a si mesma.”(p. 35-6)
Clarice era menina obediente e
submissa; Maria Inês carregava uma vivaz insubordinação, gostava de desafiar o
proibido. O temperamento de Clarice talvez tenha contribuído para o ocorrido, e
ela carregara consigo a culpa pelo fato, ainda que de forma velada.
“Poucos anos haviam sido suficientes para escurecer Octacília, para
nublar seus olhos de águas-marinhas azuis e engravidá-los de tempestade, para
deixá-la parecida com uma madrugada fria e insone. Seu humor escurecia a cada
dia, e não havia para Clarice modo de deixa de sentir-se ao menos um pouquinho culpada. Tinha certeza de
que a mãe não a amava. Talvez porque tivesse feito algo? Alguma coisa muito feia e censurável de que nem mesmo
se lembrasse?”(p. 39)
Certo dia Octacília decide enviar
Clarice ao Rio de Janeiro para morar com uma tia solteirona e ali passar uma
temporada de estudos. Octacília e Clarice não eram próximas e uma semana após a
decisão de enviar Clarice ao Rio, Octacília chama a filha no meio da noite para
ver a lua. Conversam pouco, mas resta a impressão de que Octacília culpa
Clarice pelo ocorrido.
“Entre elas não havia confissões, não havia trocas de carinhos, mas
muitos e longos silêncios. Desde sempre. Sobretudo por isso Clarice
surpreendera-se com aquela iniciativa, mandá-la para o Rio de Janeiro. Pois se
tudo era tão subterrâneo, se tudo era tão secreto.”(p.92)
O ano era 1965 e Clarice
permaneceu no Rio por cinco anos. Nestes anos, Clarice tenta esquecer e moldar
uma nova Clarice. Dali saiu diretamente para igreja de Jabuticabais onde lhe
esperava no altar Ilton Xavier. O casamento durou 6 anos e numa manhã qualquer,
Clarice partiu sem dizer nada. Sem rumo, Clarice vive de bicos no interior até
chegar ao Rio, onde mergulha nas drogas e é “adotada” por um namorado
traficante. Passado algum tempo, ela tenta o suicídio.
Tomás é um personagem
coadjuvante, à margem das mulheres da trama, mas cuja história traz consigo um
caráter de homem-objeto, um acessório de Maria Inês. Esta, por sua vez, parece
saltar pelo mundo em busca de um amor verdadeiro, mas contenta-se com a
superficialidade da variedade. Primeiro, Tomás. Depois Bernardo, um colega de
turma que se transforma em cantor lírico e que coleciona namoradas em diversas
cidades do mundo, como um marinheiro nômade e sem residência fixa. Quando está
no Rio, protagoniza encontros sexuais com Maria Inês, onde ela se submete a ser
mais uma na coleção de Bernardo Águas. João Miguel é o marido, com queda por
jovens bonitos e moças jovens. Maria Inês nota isto num café em Veneza, ponto
de partida para uma encruzilhada em seu relacionamento.
Mas Tomás parece ser o mais
sincero em relação aos seus sentimentos. Aceita ser o “outro” de Maria Inês. E
por ela espera durante quase toda a vida. Em certo trecho, a autora ao narrar a
primeira vez em que Tomás avista Maria Inês na sacada do apartamento do
Flamengo, na rua Almirante Tamandaré, e passa a desenhá-la de forma obcecada,
sua vida termina antes de começar (“A
vida de Tomás que terminou antes de começar.” – p. 149).
Tomás insiste num amor ao qual
Maria Inês se recusa a abraçar. “Mais
tarde ela diria por favor, Tomás, não se apaixone por mim, e ele perguntaria,
sorrindo, por quê?, ao que ela responderia porque eu não estou apaixonada por
você. Naquele momento, porém, e mesmo depois da revelação da não paixão, Tomás
se assegurava: seria possível. Teria de ser possível. Porque o amor dele seria
talvez suficiente para dois, como um prato farto num restaurante. Suficiente
para alimentar duas pessoas, um desejo em dobro capaz de arcar com o peso de
dois destinos, inclusive, e irmaná-los.”(p. 157)
Tomás insiste e reclama quando
Maria Inês não lhe informa a morte de Octacília. Quando Afonso Olímpio morre,
Tomás vai a Jabuticabais, conhece Clarice e nota os olhos secos das duas irmãs
no velório.
“Estavam secos.
Como estavam também os olhos de Maria Inês: secos. Estranhamente secos,
mais secos que os olhos das pessoas quando estão secos. E a ausência de
lágrimas pesava naqueles olhos marejados de falta, marejados de silêncio.”(p.
237-8)
Tomás não pergunta, não inquire,
não invade. A sua presença no velório já era uma invasão. A invasão de um
segredo que é compartilhado num único olhar entre Clarice, Maria Inês e Tomás.
Ele de nada sabia, mas desconfia de algo muito bem guardado pelas irmãs.
Após a morte do pai, Maria Inês
fica noiva de João Miguel e comunica a Tomás. “Uma paixão muito jovem. Que dividiu a existência de Tomás em duas
metades, em dois hemisférios. Em dois períodos: um a.M.I. e um d.M.I.”(p.
241)
“Maria Inês foi embora, mas não definitivamente. Voltou três meses
depois, e continuou voltando ao longo dos dois anos seguintes. Uma Maria Inês
clandestina que mais tarde haveria de se culpar e acreditar que o belo Paolo em
Veneza era somente uma espécie de troco.”(p. 243).
Ao final, descobre que Eduarda, a
moça que tem os seus olhos transparentes, é sua filha.
Maria Inês, a protagonista, parece ter medo do amor, da entrega, do sacrifício que um relacionamento exige. João Miguel, o primo que virou marido, é o companheiro conveniente, conquistado sem esforço. Tomás, o devotado e apaixonado amante, é posto de escanteio, quase esquecido, mas Tomás não teve medo de arriscar, de abraçar a paixão que lhe assolara. Maria Inês, por sua vez, segue sua vida sem se amarrar, sem criar fundações definitivas e mais profundas. Sim, Maria Inês tem medo do amor, medo de encontrar o amor verdadeiro e duradouro.
Havia uma pedreira perto da
fazenda e Maria Inês e Clarice sobem ao alto da pedreira num dia de junho, após
a tradicional festa junina.
“Maria Inês sentiu a pele da nuca eriçar-se, como se ela fosse um gato,
e perguntou com a voz forte para que ele pudesse ouvi-la de onde estava: o que
houve? O que veio fazer aqui?
Não fale assim com ele, Clarice censurou.
As distorções dela eram filhas das distorções dele. Claro.
Diante de Maria Inês e de Clarice, plantado no meio daquelas pedras
como um fantasma, os cabelos ralos esvoaçando, Afonso Olímpio viu o rosto das
coisas que ele poderia ter feito, mas não fizera. E também aquele sombrio das
coisas que ele não deveria ter feito, mas fizera, ainda assim. Um homem carente
da melhor parte de si mesmo, daquilo que agora pudesse sustentá-lo de pé.
Você acredita em inferno, pai?, Maria Inês perguntou.” (p. 288-9)
“Ela surpreendeu-se por ouvir-se dizendo aquela palavra, pai, que foi a
última que disse a ele e a última que ele próprio ouviu. Depois, muito
levemente, empurrou.” (p. 293)
O tão desejado esquecimento se
resume a um momento em que Clarice vê o pai despencar do alto da pedreira. E a
partir daquele momento, inicia o processo de cicatrização.
“O Esquecimento Profundo não existia. Clarice sabia. Nunca fora capaz de
esculpi-lo – de reivindicá-lo para si. Também não existia algo como uma
lembrança inócua, uma ferida cauterizada. Um bicho sem as presas e sem os
dentes, sendo, apenas. A pacificação do passado com tudo aquilo que ele
comportava. Existia uma cidade na memória de Clarice, uma cidade destruída pela
guerra ou por um terremoto. Agora, havia construções novas e o entulho já fora
removido e os mortos, enterrados – porém, haveria como reverter aquela memória?
Como atualizá-la?” (p. 303-4)
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