terça-feira, 9 de outubro de 2012

Conto: Cristal

Cristal - Bajofondo Tango Club




Cristal


Uma estranha melancolia tomou-lhe de assalto naquele final de tarde. Ainda estava claro, o sol recolhia-se preguiçosamente no horizonte. Resolveu caminhar dispensado a estação de metrô bem próxima do escritório no centro da cidade. Olhar ausente, quase monástico, passos lentos e sem a jovialidade que lhe era característica. Seu estado de espírito contrastava claramente com a notícia que recebera do chefe durante o almoço: ganhara a promoção, o cargo almejado durante os últimos dois anos era dele. Teria que se mudar para os Estados Unidos, mas aliaria novos desafios a um programa de MBA em Boston. O que mais poderia querer? Não era este o sonho de todo profissional jovem e ambicioso?


O vazio insistia em lhe rondar a alma. A vida, infelizmente, revelava-se binária, sem um cardápio de cores, tons e matizes variados como uma cartela de loja de tintas com suas amostras. A tinta revela-se na parede diferente do mostruário, assim como a realidade desejada nem sempre tem o doce sabor do sonho quando se materializa.


A decisão fácil era a improvável; a decisão difícil era impossível.


O caminho parecia não lhe oferecer alternativa. Teria que seguir no trilho que o destino lhe condenara. Não havia escapatória, nem tampouco alternativa. Resignado, conformou-se, sem os lamúrios do tango ou dos fados que seu pai tanto adorava e que ouvira repetidamente na infância.


Entrou no apartamento, beijou a testa da mãe após afastar-lhe os cabelos com a mão. Seus olhos buscaram os dele com ternura perceptível apenas por ele. Palavras não eram ditas por ela desde o grave derrame. Permanecia silente e paralisada na cadeira de rodas.


Dispensou a enfermeira. A noite era o turno que lhe cabia há quatro anos. Num pequeno cálice de cristal deu-lhe um gole de vinho do Porto. E sucessivamente, até o final da taça. O único prazer que insistia em dar à mãe religiosamente todos os dias.





NOTA: O texto surgiu a partir da música Cristal, do Bajofondo Tango Club, num exercício de escrita. Deixe a música servir de trilha sonora a estória.

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